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Gilgamesh - O Rei de Uruk


Gilgamesh foi o quinto rei da primeira dinastia de Uruk, tendo reinado por volta de 2650 a.C. Considerado o mais ilustre antecessor dos reis sumérios, Gilgamesh tornou-se objeto de lendas e poemas passando a ser venerado como um herói que, ao longo do tempo, foi sendo divinizado. Ele foi um semideus, filho da deusa Ninsun.


Os feitos de Gilgamesh, rei de Uruk, na antiga Mesopotâmia, foram cantados por dois mil anos até que um grande incêndio, em 612 a.C. devastou a biblioteca de Nínive, que guardava os registros escritos. Sem eles, o nome de Gilgamesh foi sendo pouco a pouco esquecido até desaparecer completamente. Desapareceram, também, os registros das sociedades que povoaram a Mesopotâmia e regiões vizinhas, e com eles, o passado do Oriente Próximo. Passaram-se outros dois mil e quatrocentos anos quando o arqueólogo britânico Austen Henry Layard descobriu as ruínas soterradas da biblioteca de Nínive, em meados do século XIX. Foram encontradas cerca de 30.000 plaquetas de argila com escrita cuneiforme. Eram fragmentos que formavam 1.200 textos distintos. Entre eles, estavam as 12 plaquetas contendo a Epopeia de Gilgamesh. A fabulosa história desse herói foi recuperada 48 séculos depois de seu reinado e, mais uma vez, encantou historiadores e o público leigo.



A biblioteca de Assurbanipal


Assurbanipal (668-626 a.C.), o último grande rei do Império Assírio, foi um grande conquistador. Mas, além de saqueador do Egito e de Susa foi, também, o criador de uma notável biblioteca, considerada a primeira da História. Localizada no palácio de Assurbanipal, em Nínive, a biblioteca possuía uma coleção com milhares de placas de argila contendo textos em escrita cuneiforme, alguns em duas línguas: sumério e acádio. Eram hinos, poemas, contratos e textos sobre assuntos variados: geografia, matemática, medicina, religião, astronomia, leis, presságios, relatos de viagens e aventuras etc.

Assurbanipal que tinha grande interesse pela literatura e erudição, enviou escribas aos centros de saber da Babilônia, Uruk, Nippur e Akad com a missão de copiar, em tabuletas de argila, todos os assuntos então correntes. Os escribas também traduziram as antigas escritas para o semítico acadiano da época. A biblioteca desapareceu em 612 a.C. quando uma coligação de babilônios, citas e medos invadiu e ocupou Nínive incendiando o palácio real. Os tabletes de argila ficaram parcialmente cozidos – processo que, paradoxalmente, ajudou a preservar a placas. Porém, os textos escritos em placas de cera, couro e papiro foram perdidos para sempre.



A Epopeia de Gilgamesh: a primeira versão do Gênesis?

As milhares de placas encontradas nas escavações em Nínive, em 1849, foram levadas para o Museu Britânico, em Londres e ficaram sob a responsabilidade de Henry Rawlinson. Havia pouco tempo que ele decifrara o cuneiforme. Coube a George Smith, auxiliar de Rawlinson no museu e perito na decifração do cuneiforme, fazer a segunda grande descoberta: em 1872, diante de uma plateia de especialistas, ele leu a 11ª. tabuinha que narrava sobre um dilúvio devastador do qual somente um homem sobreviveu. A revelação causou impacto entre especialistas, teólogos e o público leigo. Mais surpresas vieram com a decifração de outras tabuinhas: Araru, a deusa criadora do homem, o mito Enuma elish, o poema da criação, e o mito de Adapa, o homem que recusou a imortalidade – personagem que, para alguns estudiosos, seria o Adão bíblico. O impacto dessas descobertas desafiavam a erudição literária e bíblica e lançavam para tempos mais longínquos a história da humanidade. A Epopeia de Gilgamesh já circulava por volta de 2.100 a.C., mas era muito anterior a essa data. Diante dessa datação, todas as literaturas ditas, então, como as primeiras da história, mostravam-se bem mais recentes. As narrativas do Pentateuco ou Torá, a parte mais antiga do Velho Testamento, são do I Milênio, e a versão hebraica da Bíblia teria sido redigida entre os séculos VIII e V a.C., principalmente no tempo do rei Josias (640-609 a.C.). Por sua vez, os poemas épicos Ilíada e Odisseia, atribuídos a Homero, remontam aos séculos IX e VIII a.C. Muito já se pesquisou e escreveu sobre a influência da Epopeia de Gilgamesh sobre a escrita do Gênesis chegando a se questionar a veracidade dos textos bíblicos. Por outro lado, a epopeia que chegou a nós também não é original, mas um compilado de lendas e poemas onde se misturaram tradições culturais de sumérios, acádios, assírios e babilônicos. Foram encontradas cópias do poema em regiões diversas da antiga Mesopotâmia, da Palestina e da Turquia, e nem todas as versões coincidem. Enfim, tanto a epopeia de Gilgamesh quanto o livro do Gênesis poderiam ter sido influenciados por histórias ainda mais antigas e difundidas no Oriente. Como lembra Fernand Braudel:


“O passado das civilizações nada mais é que a história dos empréstimos que elas fizeram uma às outras ao longo dos séculos…”

Síntese da Epopeia de Gilgamesh

Gilgamesh foi o quinto rei da primeira dinastia de Uruk, tendo reinado por volta de 2650 a.C. Considerado o mais ilustre antecessor dos reis sumérios, Gilgamesh tornou-se objeto de lendas e poemas passando a ser venerado como um herói que, ao longo do tempo, foi sendo divinizado. Uruk, cidade suméria surgida por volta de 3.500 a.C., foi uma das primeiras cidades da História. Exerceu forte influência na cultura, urbanização e formação do Estado na região mesopotâmica. O poema menciona suas muralhas, templos e mercados – o que foi confirmado pela arqueologia


O poema se inicia com uma exaltação a Gilgamesh destacando suas virtudes, sua constituição (dois terços divinos e um terço humano) e seus feitos: as muralhas de Uruk e o templo de Eanna. O rei é imbatível e arrogante, e a população, embora reconheça sua competência, está insatisfeita com a prepotência e luxúria dele. Os habitantes de Uruk rogam à deusa Aruru para criar um ser igual a Gilgamesh que o desafie. Aruru, tomando um pouco de barro, cria Enkidu, deixando-o no meio da floresta, afastado da humanidade. Ele é um homem selvagem, tem o corpo coberto de pelo, os cabelos longos e desgrenhados. Ele vive com e como os animais.


Gilgamesh toma conhecimento da existência de Enkidu e manda uma cortesã sagrada seduzir Enkidu e introduzi-lo a hábitos civilizados. A mulher corta os cabelos de Enkidu, raspa os pelos, veste-o e ensina-o a comer pão e tomar vinho. Finalmente, leva-o a Gilgamesh. Ao se verem, os dois se estranham, medem força e lutam ferozmente. Enkidu faz Gilgamesh ajoelhar-se ou perder o equilíbrio e cair. Em outra interpretação, Gilgamesh acaba derrubando Enkidu. Seja como for, a luta termina empatada, os dois se abraçam e selam sua amizade. A vida na cidade, porém, os torna indolentes e preguiçosos e eles decidem, então, partir para aventuras que os desafiem. Primeiro, enfrentam Humbaba, um gigante feroz e temível que vomita fogo, e vive na floresta de cedros. Gilgamesh arremete oito furacões contra o monstro e os dois heróis matam o monstro Humbaba cortando-lhe a cabeça. A segunda aventura é consequência direta da primeira. Ao regressar ao palácio, Gilgamesh se lava e coloca sua melhor roupa. Sua beleza atrai a deusa Isthar que se apaixona e pede-o em casamento. Promete-lhe presentes magníficos, poderes e a divinização. Gilgamesh recusa, desdenhando a oferta explica que Ishtar abandona os amantes depois de esgotá-los. Ofendida, Ishtar se vinga, enviando o gigantesco touro celeste para destruir o herói e seu palácio. O touro, contudo, é derrotado por Gilgamesh e Enkidu. Inconformada, Ishtar amaldiçoa Gilgamesh e pune-o com a morte do amigo. Enkidu é tomado por uma doença fatal e depois de doze dias de sofrimento, falece. Gilgamesh se desespera com a perda do amigo. Tomado de pânico ao pensar que também um dia morreria, ele sai à procura de Utnapishtim, o único homem que foi poupado pelo dilúvio e que vivia nos confins do mundo gozando do dom da imortalidade. O rei quer saber como poderia, também, alcançar a imortalidade. Depois de uma longa jornada, cheia de perigos e provações, Gilgamesh chega até Utnapishtim. Este lhe conta como foi o dilúvio e tenta convencer o rei que sua busca é irrealizável. Gilgamesh insiste mas Utnapishtim não cede. Contudo, a mulher de Utnapishtim, compadecida com o fracasso do herói, revela-lhe o segredo da imortalidade: no fundo do mar, havia uma planta maravilhosa e quem a comesse seria eternamente jovem. O herói amarra pedras nos pés, mergulha no mar profundo e encontra a planta mágica. Fere as mãos para arrancá-la, mas consegue traze-la à superfície. Mas não a come, decide dividi-la com os anciãos de Uruk. Percorre, então o caminho de volta. Cansado, adormece. Uma serpente sente o cheiro da flor e se apossa dela, e logo muda de pele e rejuvenesce. Gilgamesh descobre que falhou e volta decepcionado para Uruk onde volta a admirar suas muralhas e construções.


Os temas e reflexões da epopeia


Considerada a primeira obra literária da História, a Epopeia de Gilgamesh mostra que as questões fundamentais da existência humana – felicidade, amor, sexo, amizade, poder, o sentido da vida, a certeza da morte e as incertezas do destino – acompanham o homem há milhares de anos. Gilgamesh é o modelo de herói, com virtudes e defeitos humanos, que se arrisca ao novo, desconhecido e extraordinário e, com isso provoca profundas mudanças. A jornada do herói é a da transformação interior. No início do poema, a exaltação a Gilgamesh diz respeito à pessoa que ele se tornou ao final de sua jornada – “o sábio que viu os mistérios e conheceu coisas secretas”. A arrogância, truculência e luxúria de Gilgamesh são contestadas pelo seu povo. O governante pode tudo? Não, e os habitante de Uruk reclamam aos deuses. Entendem que o líder deveria trabalhar pela harmonia da sociedade (“ser um pastor para seu povo”) e não provocar a discórdia. Clamam por justiça e fim da opressão. Um interessante ponto de partida para refletir sobre a diferença de autocracia e tirania. Enkidu surge para desafiar Gilgamesh. A criação de Enkidu traz elementos intrigantes. Ele é criado pela deusa Aruru a partir do barro – diferente da tradição hebraico-judaica que se refere a um deus criador masculino. Enkidu, como Adão, vive entre os animais e em harmonia com eles. Quem vai mudar esse cenário é uma mulher, a cortesã sagrada Shamhat. O papel de Shamhat é crucial: ela usa sua beleza e sedução para atrair o selvagem Enkidu e, através de relações sexuais contínuas, ensinar-lhe os fundamentos da vida civilizada, a comer alimentos elaborados, beber vinho, vestir-se e se expressar através da música e do canto. Shamhat cujo nome significa “a alegre”, é quem introduz Enkidu à vida em sociedade. As habilidades sexuais de Shamhat estabelecem a diferença entre o sexo para procriação – impulso próprio dos animais – e a sensualidade artística e sofisticada própria da civilização. Os mesopotâmicos entendiam a prostituição como uma das características básicas da vida urbana e civilizada. Daí entender o papel de Shamhat: apresentar para Enkidu o mundo sedutor mas complexo da cultura humana. Quando Enkidu está morrendo, ele expressa sua raiva contra Shamhat por tê-lo tornado civilizado, culpando-a por trazê-lo para o novo mundo de experiências que o levou à morte. Ele a amaldiçoa. O deus Shamash, o Sol, intervém e lembra a Enkidu que Shamhat o alimentou e o vestiu. Enkidu cede e abençoa-a dizendo que todos os homens a desejarão e lhe oferecerão joias de presente. Depois de deitar-se com Shamhat seis dias e sete noites, Enkidu tentou voltar à sua vida selvagem, mas os animais fugiram dele. Assim como Adão ao provar o fruto do conhecimento oferecido por Eva foi expulso do paraíso, Enkidu não é mais o mesmo depois do aprendizado dado pela mulher. Rompeu-se a conexão do homem selvagem com o mundo natural. Os animais o rejeitaram e ele, então, deve ir para o lugar onde esse conhecimento pode ser usado, a cidade. O encontro de Enkidu e Gilgamesh é outro momento chave da epopeia. Enkidu é o reflexo do rei: são iguais mas não idênticos. Têm a mesma força física e arrogância, mas diferentes experiências humanas. Enkidu não tem família, afinado com o mundo natural e selvagem. Gilgamesh tem pai e mãe (o poema faz constante menção a Ninsun, mãe do rei e a intérprete de seus sonhos), vive e governa uma grande cidade. Ambos heróis representam a polaridade entre natureza e cultura. Enkidu será o agente das mudanças de Gilgamesh. Inclusive na morte, Enkidu é um ponto de virada na jornada no rei. Enkidu, o selvagem, trará a Gilgamseh a oportunidade de se perceber humano, como todos os outros, e deixar de lado sua arrogância e sua recusa em aceitar o destino humano. A relação fraternal entre eles nasce de suas diferenças sobre as quais se equilibram, complementando-se e compensando que falta ao outro. Talvez esse seja o sentido mais profundo da luta inconclusa entre eles, sem vencedor e vencido. Eles foram criados para equilibrar um ao outro, compensando o que falta no outro. A amizade de Gilgamesh e Enkidu se constrói na disputa, na escuta, na perda, no ganho, na cooperação, no ciúmes, na vaidade, na lealdade, na coragem, na agressividade e na amorosidade. A psicologia analítica ou junguiana (iniciada por Carl Gustav Jung) vê Enkidu o irmão-sombra de Gilgamesh, sua “criança interior”, frágil e vulnerável (ou mesmo desprezada e humilhada). Para silenciá-la, o indivíduo desafia-se continuamente a provar sua grandeza, poder e força. Por trás desse comportamento está a sociedade patriarcal, com suas imposições de sucesso e desempenho, seu desprezo pelos semelhantes, pela mulher, pelos animais e pelo meio ambiente. Daí a arrogância, a intolerância, a vaidade desmedida e a intransigência. Há quem veja a relação fraternal entre Enkidu e Gilgamesh similar a de Aquiles e Pátroclo, na Ilíada de Homero, sugerindo um relacionamento romântico, homoafetivo. Não há na epopeia nada evidente que possa sustentar essa hipótese e, talvez, essas análises estejam dizendo mais de nossos parâmetros morais contemporâneos do que sobre os valores e mentalidade da História Antiga do Oriente Próximo. Após aventuras e perigos, a epopeia aproxima-se de seu grande tema final: a busca da imortalidade. Cabe a uma mulher fornecer a chave do segredo a Gilgamesh: ela fala sobre a planta capaz de dar a eterna juventude a quem a comesse. De posse da planta, Gilgamesh tomado de compaixão (já não é mais o rei arrogante) decide levá-la a Uruk e dividi-la com os anciãos da cidade. Porém, uma serpente come a planta roubando a imortalidade do homem. Impossível não fazer uma analogia com a serpente do Gênesis que tirou a vida eterna de Adão e Eva e levou-os à expulsão do Éden. Chegando a Uruk, Gilgamesh comenta com o barqueiro que o acompanha sobre a beleza e imponência da cidade, feita de tijolos cozidos, com suas muralhas, templos e jardins. Os versos anunciam: “Tudo isso era obra de Gilgamesh, o rei que conheceu os países do mundo. Ele era o sábio, viu os mistérios e conheceu as coisas secretas. Transmitiu-nos uma história dos dias antes do dilúvio. Fez uma longa jornada, conheceu o cansaço, esgotou-se em trabalhos e, ao regressar, gravou numa pedra toda a história.” (TAMEN, 1992, p. 89-90). Essa era a imortalidade tão desejada por Gilgamesh: suas obras, a sabedoria alcançada e sua história transmitida às gerações futuras – enfim, tudo o que realmente fica para a eternidade.



Resumo da trama da Epópeia

Para situar o episódio, comecemos com um resumo da trama da epopéia. O herói é um semideus, já que sua mãe é a deusa Ninsun. Enquanto ele reina em Uruk, os habitantes, inconformados com seus abusos, resolvem queixar-se à deusa Ishtar. Um herói rival, Enkidu, é criado para mantê-lo ocupado, deixando em paz os cidadãos. Enkidu nasce inocente, vive entre animais selvagens como um deles, e cuida de livrá-los sempre que pode das armadilhas dos caçadores. Agora são estes que se queixam... Gilgamesh manda uma prostituta seduzir Enkidu. Ele perde a inocência, os animais passam a evitá-lo. A prostituta, certa de agir em benefício dele, convence-o a aderir à civilização e a procurar Gilgamesh. Os dois lutam, Gilgamesh o vence, tornam-se amigos inseparáveis. Realizam juntos várias façanhas, chegando mesmo a matar Humbaba, o guardião da floresta de cedros. A deusa Ishtar contempla Gilgamesh vitorioso e se apaixona por ele, mas o herói a rejeita e Enkidu zomba dela. Nada podendo contra o semideus, Ishtar causa a morte de Enkidu.

E aqui começa o episódio que acompanharemos. Ao assistir ao fim do amigo, Gilgamesh toma pela primeira vez consciência da morte - à qual sua parte humana um dia também o condenaria. Decide então sair em busca da imortalidade. Procura Utanapishtim, como o Noé bíblico, sobrevivente de um dilúvio, de que fora prevenido por um deus através de recado fingidamente endereçado a um muro de junco... Utanapishtim que, com sua mulher, teriam sido os únicos seres humanos a se tornarem imortais, não quer ou não pode transmitir esse dom a Gilgamesh. Contudo, ensina ao herói como obter uma planta com a qual, como o Fausto da lenda européia medieval, poderia recuperar a juventude. Mas a planta é roubada por uma serpente.

E que planta seria essa? Gilgamesh desce ao fundo do mar para colhê-la, à beira da terra paradisíaca em que fora morar Utanapishtim. Um poema sumério que também narra esse dilúvio indica o nome do lugar: Dilmun ou Tilmun, que os gregos conheciam como Tylos e os árabes de hoje como Bahrain, conjunto de ilhas situadas no golfo Pérsico.

Os povos da Mesopotâmia acreditavam que o sol nascia em Dilmun e, ao fim de sua trajetória diurna, penetrava nos recessos do monte Mashu. Durante a noite, seguia de volta por um caminho subterrâneo. Ao descescrever as maravilhas de Dilmun, verdadeiro paraíso terrestre, o poema Enki e nhursag fornece um detalhe curioso: "Da boca de onde sai a água da terra, traze a água doce da terra; [...] Torne-se teu poço de água amarga um poço de água doce." É fácil identificar a água amarga com a água salgada do mar - e também com as "águas da morte", que Gilgamesh atravessa para chegar à terra de Utanapishtim. Mas a coexistência da água doce, que propicia a vida. com a água do mar é um fenômeno efetivamente observado em Bahrain, uma realidade mais surpreendente do que a ficção (cf "Bahrain" - na Enciclopédia Britannica, vol. 2, Chicago: Encyclopaedia Britannica Inc., 1977):

Diante da costa norte das ilhas, a água também irrompe de fontes submarinas e, através dos séculos, tem sido capturada em sacos de couro por mergulhadores.

A referência a mergulhadores lembra uma atividade extrativa que, segundo os naturalistas, era realizada desde tempos imemoriais no golfo Pérsico, tendo nas ilhas Bahrain seu principal entreposto: a pesca da pérola natural. E, para essa tarefa, as técnicas de mergulho mantiveram-se as mesmas até o início da Era Moderna. Os barcos utilizados, hoje chamados "dhows", assim como o que transportou Gilgamesh, eram propelidos por vela e também por remo, e utilizavam umas pedras como plataformas, que fazem pensar nas enigmáticas "coisas de pedra" do poema (cf. "Pearl" - em The Encyclopedia Americana, vol. XXI, Nova York: Americana Corporation, 1958):

Os remos de um "dhow" são seus acessórios mais notáveis. Tendo largas pás quadradas nas extremidades, servem para dois fins: (1) ajudar a estabilizar e impulsionar a embarcação; (2) como suportes para as cordas dos mergulhadores. A cada uma dessas cordas está amarrada uma pedra chata que pode pesar até 50 libras. O mergulhador segue em pé sobre a pedra, usando-a como plataforma. Na hora de submergir, o mergulhador toma fôlego, tapa o nariz com uma espécie de grampo, puxa o nó corredio da corda (que até então mantinha a pedra e o mergulhador em posição) e rapidamente desce aos leitos perlíferos.

Vendo uma ostra perlífera enraizada à rocha por seu tufo de fundamentos (bisso), Gilgamesh poderia perfeitamente julgar que fosse uma planta. E ela lhe espeta a mão, o que também tem a ver com os apetrechos dos pescadores de pérolas dessa região, que em seus dedos e artelhos maiores levavam coberturas de couro, para proteger-se ao andar sobre os corais aguçados no leito do mar e arrancar ostras das rochas. Mais do que pela possível riqueza que poderia representar, a virtude dessa "planta" - se for correta a hipótese de tratar-se de uma ostra perlífera - viria da propriedade mágica de ser irrigada pela água doce surgida do fundo das "águas da morte". Mas é preciso reconhecer: para "passar de hipótese a fato comprovado, restam muitos pontos a verificar; uma das dificuldades é que Gilgamesh se propõe a comer a planta, enquanto a ostra perlífera não é comestível.

A serpente que rouba a planta do rejuvenescimento e renova a pele pode ter influenciado o trecho da estória lendária de Alexandre (...), na qual um cozinheiro vê reviver um peixe lavado por ele numa fonte de "água da imortalidade". A figura do peixe que serviria de alimento, mas retorna à vida e escapa, tem uma ocorrência análoga no Corão, onde se relata uma jornada de Moisés à procura da "terra em que os dois mares se encontram" (Corão 18:60); aliás, o nome "Bahrain" significa justamente "Dois Mares" em língua árabe.

Sem sequer alcançar a vida nova que lhe daria a planta, a expedição de Gilgamesh terminaria em uma nota triste. Ao herói resta ainda um consolo: ao regressar à sua cidade de Uruk, ele contempla extasiado as maravilhosas muralhas que um dia fizera construir - é a alegria de criar uma obra e legá-la aos que virão depois, como uma espécie, talvez, de imortalidade.

Gilgamesh chorava amargamente a morte de Enkidu, seu amigo, enquanto errava pela estepe:

- Não morrerei eu também? Não serei eu como Enkidu? A mágoa penetrou em minhas entranhas! Com medo da morte, rondo pelos descampados em busca de Utanapishtim, filho de Ubar-Tutu. Vejo leões temíveis na passagem da montanha - Ó Sin, deusa da lua, farol dos deuses, a ti minha prece para que me protejas!

Naquela noite ele deitou-se exausto para dormir. Acordou de súbito, no meio de um sonho. Na presença da lua, alegrou-se por estar vivo. Tomou um machado na mão, puxou um facão do cinto, como um raio atirou-se aos leões e os golpeou, matando alguns, pondo os outros em fuga. Comeu da carne deles e vestiu-se com suas peles. Cavou poços, onde nunca houvera um sequer, e achou água para beber enquanto enfrentava o vento. Ao amanhecer, Shamash, deus do sol, comoveu-se ao vê-lo. Falou, curvando-se em sua direção:

- Gilgamesh, aonde vais? A vida eterna que buscas não encontrarás.

- Depois de eu vaguear sem descanso pela estepe, haverá tempo mais do que suficiente para repousar no Mundo Subterrâneo, onde jazerei adormecido por anos a fio. Que agora meus olhos contemplem o sol, deixa-me gozar de toda a luz que possa desejar. A escuridão é infinita - quão pouca luz existe! Quando chegarão os mortos a ver o esplendor do sol?

Gilgamesh chegou aos picos gêmeos da montanha Mashu, que cada dia protegem a saída do sol nascente; seus cimos suportam a abóbada celeste, seus fundamentos se aprofundam no Mundo Subterrâneo. Homens-escorpiões guardam a entrada do monte, a aparência deles causa medo, seu veneno é mortal, sua radiância temível espalha-se pela montanha. Cabe-lhes vigiar o sol ao nascer e ao se pôr. Vendo-lhes a aparência pavorosa, Gilgamesh cobriu o rosto, mas logo, dominando-se, aproximou-se deles. Um homem-escorpião disse à mulher:

- Olha este que veio a nós; sei que seu corpo é feito da carne dos deuses! - Ele é dois terços divino, um terço humano - ela falou.

A Gilgamesh, rebento dos deuses, o homem-escorpião perguntou:

- Como vieste por este caminho tão longo? Como chegaste à minha presença? Como cruzaste por travessias perigosas? Revela-me tudo sobre tua jornada, quero conhecer o objetivo que persegues.

- Procuro o caminho para Utanapishtim, meu antepassado, que assistiu à assembléia dos deuses e alcançou a vida eterna. Ele haverá de contar-me o segredo da vida e da morte.

- Nunca, Ó Gilgamesh, alguém cruzou esse caminho, que segue por dentro da montanha. A passagem é de doze horas-duplas, a escuridão é densa, não há luz alguma. Mas vai, Gilgamesh, possa o monte Mashu permitir que passes em segurança.

O homem-escorpião abriu o portal da montanha e Gilgamesh entrou. Atento aos conselhos, seguiu o caminho interior que o sol percorre.

Depois de uma hora-dupla, densas eram as trevas, luz nenhuma se avistava, olhando para trás não via nada.

Depois de duas horas-duplas, densas eram as trevas, luz nenhuma se avistava, olhando para trás não via nada.

Depois de três horas-duplas, densas eram as trevas, luz nenhuma se avistava, olhando para trás não via nada.

Depois de quatro horas-duplas, densas eram as trevas, luz nenhuma se avistava, olhando para trás não via nada.

Depois de cinco horas-duplas, densas eram as trevas, luz nenhuma se avistava, olhando para trás não via nada.

Depois de seis horas-duplas, densas eram as trevas, luz nenhuma se avistava, olhando para trás não via nada.

Depois de sete horas-duplas, densas eram as trevas, luz nenhuma se avistava, olhando para trás não via nada.

Depois de oito horas-duplas, ele se apressou, densas eram as trevas, luz nenhuma se avistava, olhando para trás não via nada.

Depois de nove horas-duplas, sentiu o vento norte no rosto, densas eram as trevas, luz nenhuma se avistava, olhando para trás não via nada.

Depois de dez horas-duplas, faltava pouco.

Depois de onze horas-duplas, só mais uma restava.

Depois de doze horas-duplas, saiu à frente do sol, por todo esse tempo caminhara, a claridade do dia ali reinava.

Seguindo em frente, viu as árvores dos deuses. Uma árvore de cornalina cobria-se de frutos, pendurados como cachos de uvas, lindos de se ver. Em outra árvore, de lápis-lazuli, crescia uma folhagem e pendiam frutos, uma delícia de se contemplar. Outras maravilhas de plantas havia, feitas de coral, ágata, hematita, âmbar, turquesa... Enquanto caminhava, Gilgamesh erguia os olhos para admirar o jardim.

Siduri, a Taverneira, que vivia à beira do mar, possuía copos e tonéis de ouro. Apareceu com a cabeça coberta e o corpo envolto em véus. Gilgamesh caminhou em direção a ela, vestido de pele de animais esfolados, horrível de se ver. Da carne dos deuses era seu corpo, mas trazia o desespero nas entranhas; seu rosto era o de um viajante que vem de terra distante. A taverneira o pressentiu de longe e disse consigo mesma:

- Por certo este é um matador de touros selvagens! Porque viria direto à minha porta?

À vista dele, a taverneira barrou a entrada e subiu ao terraço. Gilgamesh encostou o ouvido à porta, depois ergueu o queixo e falou à taverneira:

- Taverneira, ao me veres por que fechaste tudo e subiste ao teto? Vou esmurrar a porta até quebrar a tranca!

- Travei a porta e subi ao terraço. Quero saber primeiro quem és. Trata de contar-me sobre tua viagem.

- Sou Gilgamesh, aquele que derrubou Humbaba, guardião da floresta de cedros, e matou o touro vindo do céu; e que também destroçou leões nos passos das montanhas.

- Se és de fato Gilgamesh, porque tens o rosto emaciado, a face entristecida, o coração angustiado, a aparência devastada, mágoa nas entranhas, a figura de um forasteiro, a pele queimada pelo frio e pelo sol. Por que te vestes de pele de leão e rondas pela estepe?

- Não estaria assim se não fosse por Enkidu, veloz jumento selvagem, onagro montanhês, pantera da estepe, meu amigo que eu tanto amava e me acompanhava em todo perigo. O fado dos mortais o alcançou. Por seis dias e sete noites chorei por ele, não entreguei seu corpo à sepultura. Fiquei a seu lado até que um verme caiu-lhe do nariz. Então tive medo. Temendo a morte, erro agora pela estepe. O que aconteceu com Enkidu me pesa muito, e por isso vagueio por este caminho remoto. Como posso silenciar? Meu amigo, a quem eu amava, transformou-se em barro. Não jazerei um dia como ele, para nunca mais me erguer, por todo o sempre?

- Gilgamesh, porque motivo segues vagueando? A vida eterna que procuras não encontrarás. Quando os deuses criaram a humanidade, designaram para ela a morte, reservaram a vida eterna para eles mesmos. Portanto, Gilgamesh, trata de encher teu ventre. Busca dia e noite divertir-te, arruma novos prazeres a cada dia, folga e dança dia e noite. Veste roupas limpas, mantém a cabeça bem lavada, banha-te na água. Olha com carinho o pequeno que vem segurar tua mão, faze tua mulher deleitar-se em teus braços. Eis o trabalho que cabe ao homem.

- Mas dize agora, taverneira, qual atalho leva a Utanapishtim; ensina-me os marcos que assinalam o caminho. Se for possível chegar até lá, cruzarei o mar, senão vagarei de novo pela estepe como um bandido.

- Gilgamesh, nunca existiu passagem para aquele lugar, nem houve desde os tempos antigos quem pudesse cruzar esse mar. Somente o bravo Shamash o percorre: além do deus do sol, quem poderia? É um cruzeiro arriscado, um percurso cheio de perigos, e no meio estão as águas da morte a bloquear o caminho - se chegares até elas, que farás? E, no entanto, Gilgamesh, há Urshanabi, barqueiro de Utanapishtim, que tem consigo as coisas de pedra. Ele estará cuidando de pinheiros na floresta - vai, mostra-te a ele. Se for possível, atravessa o mar com ele, senão volta para tua terra.

Gilgamesh escutou as palavras dela. Pegou um machado, sacou a faca que levava à cintura e como uma flecha penetrou na floresta, fazendo ressoar seu grito de batalha. Urshanabi o encarou; Gilgamesh bateu-lhe na cabeça e lhe imobilizou os braços. Recolhendo as coisas de pedra, sem cuja proteção ninguém cruza as águas da morte, Gilgamesh as despedaçou e atirou ao rio. Urshanabi lhe perguntou:

- Tu, como te chamas? Eu sou Urshanabi, servo de Utanapishtim o Distante.

- Gilgamesh é meu nome e venho de Uruk-Eanna. Sou aquele que seguiu através das montanhas, pelo caminho oculto por onde passa o sol.

- E porque tens o rosto tão encovado, porque andas cabisbaixo, deânimo aflito, as feições debilitadas? Por que reside a mágoa em teu coração e teu aspecto parece o de alguém que vem de longe? Por que tens a cara queimada pela geada e pelo sol e por que rondas pelo mato com veste de leão?

Gilgamesh contou sua história e, por fim, perguntou:

- Agora, Urshanabi, por que rota se vai a Utanapishtim? Dá-me as indicações, os sinais. Se a travessia pode ser feita, cruzarei o oceano.

- Tuas próprias mãos, ó Gilgamesh, impediram tua viagem. Quebraste as coisas de pedra e as atiraste no rio, e os pinheiros ainda não foram cortados. As coisas de pedra levavam-me na travessia, de modo que eu não tocava nas águas da morte. Mas, em tua fúria, vieste arrancar-lhes as cordas e as destruíste! Agora pega um machado e vai cortar trezentas varas de cinco rods de comprimento. Trata de desbastá-las e prepará-las, para servirem de remos, e traze-as para mim.

Ouvindo isso, Gilgamesh empunhou um machado e entrou na floresta para providenciar as varas. Logo que voltou a Urshanabi, os dois lançaram o barco à água, subiram a bordo e partiram. Cobriram uma jornada de três meses e meio em três dias apenas. Quando chegaram às águas da morte, Urshanabi o advertiu:

- Mantém distância, Gilgamesh! Pega a primeira vara, não deixes que tua mão toque as águas da morte. Pega a segunda vara... Agora, a terceira! Mais uma, outra mais!

E assim foi Gilgamesh impelindo o barco, até que todas as varas foram usadas. Ele então desatou o cinto, despiu a roupa para servir de vela, usando os braços erguidos como mastro.

Utanapishtim os avistou de longe. Falando consigo mesmo, disse:

- Por que as coisas de pedra do barco foram quebradas, e por que, além do barqueiro, vejo alguém mais a bordo? Aquele que vem vindo não é dos meus. Gilgamesh veio ter ao cais e desembarcou, face a face com Utanapishtim. Contou-lhe sobre a morte de Enkidu, sobre o tempo em que andou errante, e falou:

- Pensei então em ir procurar-te, Utanapishtim, a quem chamam de "o Distante". Percorri todas as terras, cansei-me de transpor montanhas, cruzei um por um todos os mares. Poucas vezes minha face conheceu a calma do sono; exausto, sem dormir, meu corpo se encheu de aflição. E o que ganhei afinal com tanto esforço? Antes de encontrar a taverneira minhas roupas estavam rotas. Matei ursos, hienas, leões, panteras, leopardos, cabras selvagens, as feras e toda a caça que cobre a estepe. Devorei-lhes as carnes, arranquei-lhes o couro. Possam agora fechar-se atrás de mim as portas do infortúnio, sejam seladas com alcatrão e azeviche!

- Para que, ó Gilgamesh, prolongas tua aflição, tu que em parte foste feito da carne dos deuses, parte da humanidade, e para quem os deuses serviram de pai e mãe? Já comparaste tua sorte com a dos tolos? A ti foi reservado um trono real e te fizeram sentar na assembléia dos anciões. Já aos tolos dão farelo em vez de trigo, borra de cerveja no lugar de manteiga. Vestem-se de trapos, como se fossem finos mantos, e usam uma corda velha como cinto. Não têm tino nem quem lhes aconselhe. Pensa na sina do tolo, ó Gilgamesh: tu te agitas sem parar e que ganhas com isso? Ao gastar tuas forças nessa busca incessante, ao torturar teus membros com tanto esforço, apressas o fim de teus dias.

Utanapishtim chegou mais perto; depois de uma pausa prosseguiu:

- Facilmente o homem se parte como o caniço no brejo! O belo rapaz, a mulher formosa, na flor da mocidade - a morte logo os leva. Ninguém vê a morte, a face da morte, ninguém escuta a voz cruel daquela que ceifa a humanidade. Acaso construímos uma casa para sempre? Nota como tudo se repete. Irmãos haverão de partilhar toda herança. Disputas sempre haverá na terra. O rio se avoluma e traz, junto com a inundação, um punhado de moscas flutuando na água e encarando o sol - e de repente já não resta nada. Aquele que dorme e o morto: como se parecem! Mas a imagem da morte nunca foi retratada, nunca na terra um morto se mostrou a alguém. Os deuses Anunnaki, os deuses supremos, reuniram-se em assembléia e Mammitum, que decide a sorte, fixou com eles os destinos e estabeleceram a vida e a morte - mas o dia da morte não revelaram a ninguém.

- Olhando para ti, Utanapishtim, vejo que teu aspecto nada tem de diferente - és semelhante a mim. Minha intenção era lutar contigo, mas agora, em tua presença, percebo que não tens ânimo para o combate; permaneces recostado, com os braços ociosos. Como pudeste um dia comparecer à assembléia dos deuses? Como vieste a ganhar a vida eterna?

- Deixa que te revele, ó Gilgamesh, um segredo bem guardado, um mistério ligado aos deuses.

E assim narrou Utanapishtim a Gilgamesh:

***

Shuruppak é uma cidade muito antiga, que bem conheces, situada à beira do Eufrates. A ela os grandes deuses vinham outrora, e uma vez decidiram fazer cair um dilúvio, e juraram todos nada contar aos homens. Lá estava Anu, pai de todos, o belicoso Enlil, que foi quem os aconselhou nesse dia, o camareiro Ninurta e também Ennugi, o controlador dos canais, além de Ea, o mais prudente. Ea, que jurara junto com os outros manter segredo, repetiu as palavras deles para uma cerca de junco, e disse ainda:

- Cerca de junco, cerca de junco! Muro de tijolo, muro de tijolo! Ouve, ó cerca de junco, presta atenção, ó muro de tijolo, guardai bem estas palavras: "Ó homem de Shuruppak, fiho de Ubar-Tutu, demole tua casa, constrói um barco, não te prendas a tuas posses e preocupa-te com a vida. Leva para bordo a semente de todos os entes vivos. Anota as medidas do barco que construirás, com a largura proporcional ao comprimento; põe em cima uma cobertura, tal como a que protege as águas profundas do Apsu."

Compreendi bem e respondi a meu senhor Ea:

- Tua ordem, meu senhor, exatamente como indicaste, eu, teu servo, cumprirei fielmente. Mas o que direi aos moradores da cidade, aos homens do povo e aos anciões?

- Falarás desta forma: "Por certo Enlil me odeia, não posso habitar mais tempo em vossa cidade, não posso caminhar no chão que a Enlil pertence. Descerei às profundezas do Apsu para viver com meu senhor Ea. Sobre vós ele fará chover em abundância uma enxurrada de pássaros, uma farta profusão de peixes e uma colheita de riquezas - chuvarada de torrões de manhã, torrente de grãos à noite."

Nas primeiras luzes do amanhecer, muitos acorreram às minhas portas, chamando-me respeitosamente de Atrahasis, como se sábio eu fosse de fato. Veio o carpinteiro carregando seu machado, o que trabalhava com junco seu utensílio de pedra. Os velhos traziam cordas, os jovens se atarefavam em volta, os ricos traziam betume, os pobres, o que faltava. Em cinco dias montei o casco. A área do tombadilho era de um acre, de dez varas a altura lateral e também de dez varas a altura da coberta superior. Eu fiz o desenho e planejei a obra. Construí seis cobertas, sete ao todo contando com a do alto; dividi o interior em nove compartimentos, prendi cavilhas nos lugares certos. Providenciei os remos e os coloquei nos suportes.

Numa fornalha derramei três sars[1] de betume, e joguei dentro três sars de breu. Os carregadores trouxeram três sars de óleo nas cestas, sem contar o que desperdiçaram. O barqueiro armazenou mais dois sars de óleo. Para alimentar meus trabalhadores, abati bois e matei carneiros diariamente. Dei a eles cerveja e vinho em quantidade, como se fosse água de rio, e eles festejavam como em dia de ano-novo. De manhã lhes fornecia ungüento para passarem nas mãos.

Numa tarde, na hora do pôr-do-sol, o barco ficou pronto. Foi difícil lançá- lo à água, foi preciso fazê-lo rolar para a frente sobre toras de madeira. Dois terços da altura do casco erguiam-se acima da linha-d'água. Carreguei para bordo tudo o que tinha, toda a prata e todo o ouro, todas as criaturas vivas que me pertenciam. Fiz embarcar todos os parentes e amigos, reuni animais dos campos, bestas selvagens, chamei todo tipo de artesãos.

Shamash já havia fixado a hora:

- Virá chuva de torrões de manhã, torrente de grãos à noite. Trata de entrar no barco e cerrar as portas.

O momento chegava, entrevi de longe a face da tempestade, era horrível de se contemplar. Embarquei e fechei a entrada. Nas mãos daquele que selou as frestas, a Puzur-Amurri, o barqueiro, confiei o barco e sua carga.

Ao primeiro alvor da manhã, ergueu-se no horizonte uma nuvem negra e dentro dela vinha o deus da tempestade, Adad, a trovejar. Os divinos Shullat e Píanish o precediam, movendo-se como tropa de vanguarda sobre montes e planícies. Errakal vinha arrancando pilares e amarras, Ninurta passava fazendo os diques transbordar. Os deuses Anunnaki brandiam tochas, incendiando o chão com seus clarões. O poder medonho de Adad percorreu o céu como touro feroz, e tudo que era claro tornou-se escuro; ele inundou a terra, ele a despedaçou como vaso de argila.

Por um dia inteiro os ventos varreram o campo, soprando velozes e trazendo o dilúvio. Como força de combate passaram por cima das gentes, ninguém conseguia enxergar quem lhe estava ao lado, não se reconheciam em meio à destruição.

Os próprios deuses se assustaram com o dilúvio, fugiram dali e subiram aos céus de Anu. Os deuses se agachavam, encolhendo-se como cães deixados ao relento. Ishtar gritava como mulher em trabalho de parto; Belet-ili, a de doce voz, gemia alto: "O tempo antigo se desfez em pó porque eu falei maldosamente na assembléia dos deuses. Como pude eu defender o mal naquela assembléia, apoiando uma guerra para destruir o povo que me pertence. Fui eu quem os fez nascer, essa gente é minha! E agora, como peixes, enchem o mar". Os deuses Anunnaki choravam com ela, choravam sentados em volta, os lábios ressequidos e cobertos de escaras.

Por seis dias e sete noites continuou o vendaval, continuou o dilúvio assobiando a terra. Quando chegou o sétimo dia, o vento abrandou, cessou a chuva. Fez-se calmo o oceano, que se debatera como mulher parindo. A tempestade aquietou-se, o dilúvio terminara.

Examinei como estava o tempo: tranqüilo e sossegado - e a humanidade toda revertera ao barro! De tão achatado, o terreno inundado parecia o telha­do de uma casa. Abri uma escotilha, a luz solar bateu em meu rosto. Sentei-me, depois caí de joelhos e chorei, deixando as lágrimas correrem pela face.

Divisei no horizonte os limites do oceano - em alguns lugares a terra já aparecia. Sobre o monte Nimush estava o barco encalhado; o monte o prendera, não o deixava mover-se. Por todo aquele dia e por um segundo dia o monte Nimush segurou o barco, não se mexia. No terceiro, quarto, quinto e sexto dias, o monte ainda o retinha. Quando chegou o sétimo dia, eu trouxe para fora uma pomba e a soltei. Lá se foi ela, mas logo retornou; não achara lugar para pousar e voltou a mim. Soltei uma andorinha, que também voltou. Então, soltei um corvo. O corvo, ao voar, viu o recuo das águas, achou o que comer, pôs-se a ciscar e não retornou mais.

Fiz então uma oferenda, preparei um sacrifício e o espalhei aos quatro ventos. No topo do monte queimei incenso, alinhei sete vasos sacrificiais e depois mais sete, cheios de gravetos de junco, cedro e murta. Os deuses aspiraram o aroma, sentiram-lhe o sabor adocicado e se ajuntaram como moscas ao redor daquele que lhes ofertava o sacrifício. Logo acorreu Belet-ili, ostentando o adereço de lápis-lazuli que Anu fizera para cortejá-la:

- Ó deuses, que as grandes contas deste meu colar me façam recordar aqueles dias para nunca esquecê-los! Que todos os deuses venham provar do incenso, menos Enlil, porque foi imprudente ao atrair o dilúvio, e votou meu povo à destruição.

Nisso, chegou Enlil e notou o barco. Foi tomado pela ira, enraiveceu-se contra os divinos Igigi:

- Quem é esse que escapou com vida? Ninguém deveria sobreviver à destruição!

Ninurta abriu a boca e falou a Enlil:

- Quem, senão Ea, poderia arquitetar tal coisa? Pois somente Ea é vesado em artifícios.

Ea veio falar e disse ao belicoso Enlil:

- Tu, ó mais sábio dos deuses, como pudeste, sem pensar no que fazias, desencadear o dilúvio? Pune quem erra por sua falta, pune o transgressor por seu crime, mas usa de moderação para não destruí-lo. Em vez de trazeres o dilúvio, melhor seria mandares erguer-se um leão para dizimar a humanidade. Em vez de trazeres o dilúvio, melhor seria lançares um lobo para diminuir o número dos homens. Em vez de trazeres o dilúvio, a fome poderia assolar a terra. Em vez de trazeres o dilúvio, Erra, o deus da peste, poderia ter ferido as gentes. Não fui eu o revelador do propósito dos deuses: apenas consenti que Atrahasis tivesse uma visão, e ele desvendou nosso segredo. Agora decide tu o que fazer com ele.

Enlil dirigiu-se ao barco, tomou-me pela mão e me levou para bordo, e também minha mulher, e a fez ajoelhar-se a meu lado. Tocou-nos a testa, postado de pé entre nós, a abençoar-nos:

- Até aqui Utanapishtim era um mortal, mas agora ele e a mulher se tornarão deuses como nós. Habitarão muito longe, onde vão dar os rios.

E foi assim que nos levaram para além dos mares, para os confins do oriente, e em Dilmun nos fizeram viver.

***

Tendo assim narrado a Gilgamesh, Utanapishtim lhe disse:

- Agora, quanto a ti, quem reuniria em tua intenção a assembléia dos deuses para que possas encontrar a vida eterna que procuras? Mas vem aqui; tenta passar seis dias e sete noites sem dormir.

Assim que Gilgamesh sentou-se sobre os calcanhares, o sono, como uma névoa, veio envolvê-lo. Disse Utanapishtim à mulher:

- Olha o rapaz que tanto desejava a vida eterna! Qual neblina, o sono já paira sobre ele.

- Toca nele e acorda-o! Assim como chegou, há de retornar em segurança; pela porta por onde entrou, retornará a sua terra.

- Não me apresses - o homem é ardiloso e tentará enganar. Coze para ele um pão a cada dia, segue enfileirando, um por um, perto da cabeça dele, e marca na parede cada dia que dormir.

Ela foi assando os pães diariamente, deixando-os em fila junto à cabeça do adormecido, e foi anotando na parede quantos dias ele dormia. A primeira porção de pão já ficara toda ressequida; feito couro a segunda; murcha a terceira; a quarta embranquecera; a quinta formara uma mancha cinzenta; a sexta permanecia fresca e a sétima ardia ainda na brasa - só então tocaram nele e o despertaram. Disse Gilgamesh a Utanapishtim o Distante:

- Mal caí no sono que me tocas e me obrigas a acordar!

- Vê bem, Gilgamesh, conta para mim os pães, e assim aprenderás quantos dias dormiste. Nota a condição de cada pão, pois só quando ficaram desse jeito eu te toquei.

- Ó Utanapishtim, que me resta fazer, aonde irei agora? Um ladrão se apossou de minha carne. No aposento onde durmo a morte habita, e onde quer que eu vá ali também espreita a morte!

Utanapishtim voltou-se para o barqueiro, falou para aquele que trouxera Gilgamesh:

- Que o cais te rejeite, ó Urshanabi, e não te deixe aportar! Que a travessia para cá te seja negada! Estás banido desta praia em que servias outrora! Mas considera antes o homem que transportaste: seus cabelos imundos lhe recobrem o corpo, peles rudes de animais lhe estragam a beleza. Leva-o, Urshanabi, traze-lhe uma cuba de água para lavar a cabeleira emaranhada o mais limpo que puder. Faze-o jogar fora as peles, que o mar as leve. Que ensaboe e esfregue bem o corpo. Arruma-lhe uma faixa nova para envolver a cabeça. Dá-lhe trajes dignos dele para vestir-se. Até voltar à sua cidade, até chegar ao fim da jornada, que as roupas não mostrem manchas, conservem-se novas e frescas!

Urshanabi obedeceu e cuidou de Gilgamesh como lhe fora ordenado. Depois, os dois empurraram o barco para a água e embarcaram. A mulher de Utanapishtim o Distante então disse ao marido:

- Gilgamesh penou para chegar até aqui, exausto, consumido pelo esforço. Que lhe darás para levar consigo?

Nisso, Gilgamesh pegou um remo e trouxe o barco de volta para perto da praia. Utanapishtim lhe falou:

- Aqui chegaste, Gilgamesh, com muito trabalho, sofrido e extenuado. Que te darei para levares de volta? Vou revelar-te, ó Gilgamesh, um segredo bem guardado, um mistério dos deuses. Existe no fundo do mar uma planta cuja haste se parece com uma sarça; tem espinhos, como os da rosa silvestre, que espetarão tua mão. Se conseguires obter essa planta, serás de novo como eras quando jovem.

Tão logo Gilgamesh ouviu estas palavras, atou pesadas pedras aos pés e mergulhou, e as pedras o arrastaram rápido até o fundo. Segurou a planta, embora lhe espetasse a mão, e a puxou para si até arrancá-la. Cortou as cordas que prendiam as pedras a seus pés e o mar o puxou para cima e o atirou na praia.

Disse Gilgamesh a Urshanabi o barqueiro:

- Urshanabi, esta é a planta que restaura, com ela pode um homem recobrar o vigor. Voltarei com ela à Uruk das altas muralhas. Farei um anccião prová-la para testar-lhe o poder. O nome da planta ficará sendo "Velho-vira-Jovem". Eu mesmo comerei dela e voltarei a ser o que era em minha juventude.

Após vinte léguas de viagem, pararam para comer. Ao completar trinta léguas, acamparam para passar a noite. Gilgamesh achou uma poça de água fresca e entrou nela para banhar-se. Uma serpente, oculta na poça, sentiu a fragrância da planta, veio furtivamente e a levou consigo. Enquanto se afastava, descartou a pele rugosa.

Então Gilgamesh sentou-se e chorou, as lágrimas lhe rolaram pelo rosto.

- Para quem, ó Urshanabi, tão duramente trabalharam meus braços? Para quem derramei o sangue de meu coração? Não foi para mim mesmo que ganhei: dei de presente ao bicho saído do chão. E, lá atrás, joguei fora as pedras e não deixei marca nenhuma indicando onde mergulhei; agora, com a maré subindo, como acharia de novo o local? E já caminhamos demais para voltar, está bem longe a praia em que abandonamos o barco.

Depois de mais vinte léguas, comeram algo. Completando trinta léguas, acamparam. Quando chegaram à cidade de Uruk, abrigo das ovelhas, lá estavam as muralhas, o parapeito, as escadarias, o sagrado Eanna, casa celeste da deusa que nenhum rei futuro poderia copiar. Gilgamesh disse ao barqueiro:

- Sobe, Urshanabi, e caminha pelo alto das muralhas de Uruk. Inspeciona seus alicerces, examina a alvenaria. Não foram os tijolos bem cozidos na fornalha? E não coube a sete sábios colocar as fundações: Olha atento para uma milha quadrada de cidade, uma milha quadrada de jardins, uma milha quadrada de barreiras, meia milha quadrada tem o templo de Ishtar - três e meia milhas quadradas é o quanto mede Uruk!

Fontes: Medida acádia. Mantivemos a forma original. (N. do E.), Templo de Apolo, FURTADO,Antônio L.Gilgamesh (Mesopotâmia).in:__________.Heróis do Ocidente e do Oriente:Mitos e Lendas.Rio de Janeiro/RJ:Nova Era,2006.Cap. 1.p.21-40 Imagem: Mateusz Ozminski, https://ensinarhistoria.com.br/gilgamesh-a-historia-mais-antiga-do-mundo/


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