Minamoto no Yoshitsune (源 義経?) (1159 - 15 de junho de 1189) foi um general do clã Minamoto do Japão que viveu durante os últimos anos do período Heian e início do período Kamakura. Foi um dos samurais mais notáveis da história japonesa, por ser ter sido um dos elementos fundamentais dos Minamoto para recuperar o prestígio do clã, abalado pelos fracassos militares que havia sofrido anteriormente e peça-chave para derrotar e aniquilar em apenas um ano o até então dominante clã Taira, durante as Guerras Genpei em 1185.
Yoshitsune foi o nono filho de Minamoto no Yoshitomo, líder do clã, e de Tokiwa Gozen, uma concubina. Seu irmão mais velho, Minamoto no Yoritomo (terceiro filho de Yoshitomo), fundou o xogunato Kamakura, que marcou a transição de poder da classe cortesã para a classe guerreira e se converteu em um poder paralelo que rivalizaria com o do próprio imperador, relegado a dirigente cerimonial e religioso pelos próximos 700 anos.
Como era costume na época, o nome de Yoshitsune durante sua infância era Ushiwakamaru (牛若丸).
A história de Yoshitsune é marcada por feitos históricos e legendários, incorporados ao folclore japonês. Sua vida trágica já foi representada em obras clássicas e tradicionais da época como o Heike Monogatari, em peças de kabuki, teatro Nô, filmes, mangás, animes, jogos de videogame,além de ter sido figurado em alguns dramas da emissora estatal japonesa, NHK, entre 1966 e 2005.
Infância e juventude
Yoshitsune pertencia ao clã Minamoto, mais especificamente ao ramo dos Seiwa Genji, um dos mais poderosos da história japonesa, cujo fundador, Minamoto no Tsunemoto, era neto do imperador Seiwa (850 - 880).
Ele nasceu pouco antes da Rebelião Heiji de 1159, em que os clãs Minamoto e Taira, rivais em sua origem imperial e disputa pelo poder, buscavam influenciar a corte imperial em Quioto. No final de 1159, Taira no Kiyomori, líder do clã Taira e aliado do imperador Nijō, saiu de Quioto com sua família para uma peregrinação. Isto providenciou uma oportunidade perfeita para que seus inimigos, Fujiwara no Nobuyori e o clã Minamoto, iniciassem a rebelião sitiando o palácio Sanjō, sequestrando o antigo imperador Go-Shirakawa e o imperador Nijō e ateando fogo ao palácio.
A rebelião foi sufocada rapidamente pelos Taira e, com esta vitória, o clã assegurou sua influência crescente no cenário político do Japão e criou as bases para a ascensão da classe samurai ao poder.
Ao final da rebelião, Yoshitomo e os dois irmãos mais velhos de Yoshitsune, Minamoto no Yoshihira (com 20 anos) e Minamoto no Tomonaga (16 anos) foram mortos. Por ser ainda um bebê, a vida de Yoshitsune foi poupada e ele foi enviado ao Templo Kurama (鞍馬寺 Kuramadera), estabelecido no Monte Hiei, próximo a Quioto. Lá, ele recebeu o nome de Ushiwakamaru, enquanto seus outros dois irmãos, Yoritomo e Noriyori, foram exilados e sua mãe, Tokiwa Gozen, também teve a vida poupada, com a condição de que se esquecesse de seus filhos e se tornasse concubina de Kiyomori. Eventualmente, por ordem de Kiyomori, Yoshitsune foi colocado sob a proteção de Fujiwara no Hidehira, líder de poderoso clã Fujiwarado norte, em Hiraizumi, na província de Mutsu, ao norte da ilha de Honshu.
Sabe-se muito pouco acerca da infância e juventude de Yoshitsune. Alguns historiadores da época preencheram as lacunas deste período de sua vida com uma série de aventuras fantásticas. Uma das mais famosas é a lenda de que o jovem Yoshitsune escapou da vigilância de Fujiwara no Hidehira para ir para as montanhas, onde foi treinado no manejo da espada e em táticas de combate por Sōjōbō, o rei mítico dos tengu, espécie de demônio ou divindade menor da mitologia japonesa.
História completa
Nos tempos antigos houve no Japão heróis como Tamura, Toshihito, Masakado, Sumitomo, Hosho e Raiko - e, na China, Fan K'uai e Chang Liang - , mas tudo o que sabemos deles é o que o povo nos conta. Certamente, nunca os vimos com nossos próprios olhos. Em questão de guerreiros realmente vistos a realizar feitos surpreendentes, sou de opinião que nosso país nunca teve quem se comparasse com Kuro Yoshitsune, filho mais novo de Yishitomo, o chefe dos Estábulos Imperiais da Esquerda, natural de Shimotsuke.
Yishitomo, pai de Yoshitsune, sofreu uma derrota na capital no vigésimo sétimo dia do décimo segundo mês do primeiro ano de Heiji, em aliança com Fujiwara Nobuyori, comandante dos Guardas do Portão. Depois que a maioria de seus seguidores hereditários tinham sido mortos ou feridos, ele retirou-se para o leste com um bando de vinte homens, incluindo seus filhos mais velhos, enquanto os mais moços permaneciam na capital. O primogênito era Kamakura Akugenda Yoshihira; o segundo era Tomonaga, de dezesseis anos, secretário de quinto grau na corte da imperatriz; e o terceiro era Yoritomo, de doze anos, chefe assistente dos Guardas Militares da Direita.
Yoshitomo tinha outros filhos, três dos quais nasceram de Tokiwa, uma dama de companhia de grau menor a serviço da ex-imperatriz Teishi. Os meninos se chamavam Imawaka, então com sete anos, Otowaka, de cinco, e Ushiwaka - o futuro Yoshitsune - , que ainda não completara um ano. Kiyo-mori deu ordens para que todos fossem capturados e executados. Tokiwa, cuja mãe acabara de ser presa, decidiu, chorando amargamente, retornar à capital com seus três filhos, para tentar protegê-los. Homens dos Taira, cientes de sua partida, mandaram Akushichibyoe Kagekiyo e Kemmotsu Taro Yoritaka trazê-la sob escolta a Rokuhara.
Enquanto isso, a dúvida de Kiyomori quanto ao que fazer com os prisioneiros era "tortura pelas chamas ou tortura por água", mas ao ver Tokiwa sua fúria se desvaneceu, pois nenhuma mulher no Japão se igualava a ela em aparência. A ex-impetratriz, perita em julgar encantos femininos, convocara uma vez as mil donzelas mais belas da capital. Selecionou uma centena dentre as mil, dez dentre as cem e uma dentre as dez - e esta foi Tokiwa. Kiyomori raciocinou que, se pudesse persuadi-la a escutá-lo, já não precisaria preocupar-se com a futura inimizade dos filhos dela. Manteve-a sob vigilância e começou a assediá-la com cartas. A princípio, ela nem sequer quis tocá-las mas, finalmente, pelo bem dos filhos, acabou capitulando. Foi assim que conseguiu manter vivos os três meninos até atingirem a maturidade.
Ushiwaka ficou com a mãe até os quatro anos. Por essa ocasião, sua precocidade atraiu a atenção de Kiyomori, que tinha o hábito de afirmar ser um perigo criar o filho de um inimigo na própria casa, e assim o menino foi mandado para Yamashina, a leste da capital, lugar onde sucessivas gerações dos Genji tinham vivido depois de retirar-se da vida ativa. Ali ficou até os sete anos.
À medida que os filhos cresciam, Tokiwa passou a preocupar-se cada vez mais com o futuro deles. Tinha relutância em fazer dos filhos servidores militares de alguma outra família, e a falta de experiência lhes barrava o acesso a carreiras na corte. Parecia restar, como único recurso viável, providenciar para que fossem treinados como monges; ao menos poderiam orar pela bem-aventurança do falecido pai Yoshitomo. Ela enviou uma mensagem ao velho monge-rezador de Yoshitomo, o decano de Tokobo, que era abade em Kurama:
- Estou certa de que ouviste falar a meu respeito e também de Ushiwaka, filho caçula de Yoshitomo. Sou apenas uma mulher e me atemoriza conservar Ushiwaka por aqui, quando os Taira são tão poderosos. Para ele seria ótimo ir para Kurama. Ele é um tanto impetuoso; peço-te que o ensines a ser gentil. Educa-o na arte de ler o melhor que puderes, e faze com que aprenda a escrita sagrada, mesmo se não passar de um único caractere.
O monge replicou que ficaria deleitado em ver um dos filhos de Yoshitomo, e mandou alguém a Yamashina pegar Ushiwaka.
Desde que subiu a montanha de Kurama no início do sexto mês de seus sete anos de idade, Ushiwaka ficou todos os dias ao lado de seu professor, recitando sutras e mergulhando nos clássicos chineses. Quando o sol se punha no ocidente, continuava a ler com seu mestre até que a chama das luzes de leitura se extinguisse. Estudava dia e noite, trabalhando com seus livros até quatro ou cinco da manhã; Tokobo estava seguro de que nem mesmo os monges do monte Hiei ou do Miidera poderiam gabar-se de ter tal pajem. Sua devoção ao conhecimento, seu caráter irrepreensível e sua grande beleza também encantavam o decano de Ryochibo e o cônego de Kakunichibo. Conforme diziam, se ele continuasse assim até completar seus vinte anos, daria um sucessor do próprio Tokobo, alguém de que o divino Tamon, ao qual santuário era dedicado, poderia orgulhar-se.
Que espírito maligno conseguiria ganhar o ouvido de tão semelhante estudioso? No outono de seu décimo quinto ano de vida, os sentimentos de Ushiwaka em relação a seus livros sofreram uma mudança surpreendente, tudo porque um servidor de sua família o exortou a rebelar-se contra os Taira. Perto da junção de Shijo-Muromachi vivia esse servidor de longa data dos Genji, um monge tonsurado, de nome Shomon, de família de guerreiros samurais, cujo pai era Kamada Jiro Masakiyo, filho da ama-de-leite de Yoshitomo. Aos 21 anos, pôs-se a ponderar sobre a situação:
- Os Minamoto atravessam tempos difíceis desde que Tameyoshi e Yoshitomo morreram na guerra. Não se comportam mais como guerreiros. E já que meu pai foi também morto por Kiyomori, o melhor a fazer é errar pelas províncias como monge, orando para que o senhor nos ilumine e pela bem-aventurança de meu pai.
Um dia, enquanto não se ocupava de obras religiosas, Shomon contou nos dedos os Genji que restavam nas províncias. Havia uma dúzia, pelo menos, mas estavam a tal distância que não tinha esperança de poder comunicar-se com eles. Refletiu então:
- O filho mais moço do senhor Yoshitomo, Ushiwaka, está em Kurama perto da capital. Por que não vou procurá-lo? Se é um jovem de coragem, poderia dar-me uma carta para Yoritomo em Izu. Ah, se as províncias se revoltassem!
Shomon partiu de pronto para Kurama, negligenciando as devoções obrigatórias do retiro de verão. O abade de Kurama o recebeu e o acomodou nos próprios aposentos, não suspeitando nem por um momento que ele viera com a intenção secreta de fomentar uma rebelião. Uma noite, quando não havia ofícios a celebrar e todos já se haviam recolhido para dormir, Shomon foi ao alojamento de Ushiwaka e começou a cochichar com ele:
- Por que estás a desperdiçar teu tempo? Acaso ninguém te contou que és filho de Yoshitomo, o chefe dos Estábulos Imperiais da Esquerda, e descendente de décima geração do imperador Seiwa? Pois fica sabendo que meu pai era Kamada Jirobyoe, filho da ama-de-leite de teu pai Yoshitomo. Não te importas que teus parentes tenham de viver miseravelmente, escondidos nas províncias?
Desde seu encontro com Shomon, Ushiwaka em nada mais pensou a não ser em rebelião, dia e noite. Esqueceu de seus estudos tão completamente como se nunca tivessem existido. Disse a si mesmo:
- O líder de uma revolta deve ser um guerreiro de verdade. Seria bom se eu aprendesse a lutar.
O lugar onde estava alojado, com gente constantemente entrando e saindo, claramente não servia para exercícios militares. Longe dali, no monte Kurama, havia uma ravina chamada Sojo-ga-tani, na qual alguém dedicara outrora um santuário a um espírito miraculoso conhecido como Divindade de Kibune, e onde monges letrados famosos haviam praticado devoções.
Tinha sido então um lugar de maravilhas, em que ecoava o som de sinos budistas e a batida dos tambores sacros dos sacerdotes, embora os poderes milagrosos tivessem enfraquecido, tempos mais tarde, no clima degenerado dessa era de declínio. Os edifícios abandonados eram agora morada de demônios tengu; aparições sobrenaturais soltavam gritos pela ravina depois do pôr-do-sol, afugentando dali todos os que pretendessem escolher Sojo-ga-tani como lugar de retiro piedoso.
Depois de Ushiwaka ter ouvido falar sobre Sojo-ga-tani, deu mostras de se dedicar a seus estudos como de costume durante o dia, mas, à noite, sem uma palavra sequer, nem mesmo para seus irmãos por juramento entre os monges, passou a ir regularmente ao santuário de Kibune, usando no peito um corselete chamado Shikitae, que o abade lhe presenteara, e uma espada com ornamentos dourados. Chegado ao local, orava de mãos juntas:
- Ouvi-me, grande deus misericordioso! Ouvi-me, grande Bodhisattva Hachiman! Preserva os Genji! Se meu desejo for atendido, erguerei para ti um santuário magnífico, ocupando 25 acres de terreno.
Pronunciado o voto, ficava de pé com a face voltada para sudoeste. Fazia de conta que os tufos e arbustos em redor eram outros tantos membros da família dos Taira, e desferia golpes contra a árvore mais alta, que apelidara de Kiyomori. Depois tirava da blusa objetos parecidos com bolas de jogo gitcho, as quais suspendia aos galhos, chamando uma delas de "cabeça de Shigemori", enquanto a outra seria a "cabeça de Kiyomori". Dizem que o próprio grande tengu Sojobo, sob a forma de um velho monge de cabelos brancos, era quem vinha instruir Ushiwaka, ensinando-lhe os segredos da arte militar do heiho, os quais conferiam uma habilidade sobre-humana com a espada. Ao nascer do dia, o rapaz voltava aos alojamentos e se deitava, tapando a cabeça com uma coberta, sem que ninguém desconfiasse de nada.
Com o passar do tempo, contudo, um monge chamado Izumi, que trabalhava como servo de Ushiwaka, ficou intrigado com o comportamento do amo e começou a vigiá-lo de perto. Uma noite, seguiu Ushiwaka e observou suas idas e vindas escondido atrás de uma moita; então apressou-se a informar Tokobo. Este, muito aflito, instruiu Ryochibo:
- Dize a todos que vamos raspar logo a cabeça de Ushiwaka, para fazer dele um monge.
Ryochibo protestou:
- Deveríamos considerar o caso de cada menino separadamente. Seria uma pena forçar um rapaz tão bonito a tomar votos neste ano. Não poderíamos esperar até a próxima primavera?
- Qualquer um acha difícil dizer adeus ao mundo, seja quem for. Tanto por mim, como para o bem do menino, não admitirei esse tipo de má conduta. Cortem-lhe o cabelo!
Ushiwaka, quando soube, reagiu:
- Quem quer que chegue perto de mim para raspar minha cabeça levará uma estocada!
Não haveria de ser fácil transformá-lo em monge. Outros intercederam e talvez o compassivo Tokobo sentisse pena de Ushiwaka. Deixou-o sob os cuidados de Kakunichi, para que continuasse a estudar na tranqüilidade de alojamentos segregados. Foi nessa época que Ushiwaka mudou seu nome para Shanao. Deixou de visitar o monte Kibune e passou a ir diariamente ao salão principal, onde orava diante da imagem de Tamon pelo sucesso de sua revolta. Mais tarde, fugiu do templo com a ajuda de um comerciante de ouro chamado Kichiji, que o levou a Oshu, nas terras remotas do nordeste.
No caminho, em Kagami, passava a noite entre cortesãs quando a casa foi invadida por ladrões. Pela aparência, Shanao era ainda o pajem incomparável cuja fama tinha-se espalhado de Kurama a Nara e ao monte Hiei. Com sua peie incrivelmente branca, dentes pintados de preto, sobrancelhas acentuadas com traços finos e cabeça coberta, parecia não menos belo do que a notória Matsura Sayohime. Os ladrões o empurraram para trás de um biombo, tomando-o por uma cortesã. Shanao precipitou-se de espada erguida contra eles, matou vários homens e pôs os demais em fuga.
Ainda em Kagami, oficiou em sua própria cerimônia de maioridade, chamada gempuku, colocando sobre a cabeça o capelo que atestava sua condição de homem adulto e, como tal, adotando o nome definitivo de Sama Kuro Yoshitsune. Decidiu chamar-se "Kuro", como se fosse o nono filho de seu pai, porque pensou:
- Teria direito a chamar-me "Hachiro", "o oitavo", mas não quero parecer aproveitar-me do nome de meu tio, Chinzei Hachiro, que ganhou tanta reputação no conflito Hogen. E como o nome de meu avô era Tameyoshi, o do meu pai Yoshitomo e o do meu irmão mais velho Yoshihira, que meu nome também contenha "Yoshi", para eu ser "bom e respeitoso" como eles.
Havia um certo livro chinês, o Liu t'ao, de dezesseis capítulos, um trabalho apreciado por antigos imperadores e zelosamente preservado por grandes ministros, que tornava gênios militares todos aqueles que dominassem seu conteúdo, fossem eles chineses ou japoneses. Foi depois de estudar essas páginas que Lu Shang, da China, subiu ao céu partindo de cima de um muro de oito pés; Chang Liang, que lhe deu o nome de "Livro de um Capítulo", voou através dos ares sobre uma haste de bambu de três pés de comprimento; e Fan K'uai, revestido de armadura, fez seu cabelo eriçar-se através do topo de seu elmo quando raivosamente confrontava um inimigo com arco e flecha nas mãos. No Japão, a leitura do livro permitiu a Sakanoue Tamuramaro capturar Akuji Takamaro, e a Fujiwara Toshihito subjugar o general Akagashira Shiro. Depois de longo tempo esquecido, atraiu a atenção de Soma Masakado, um estouvado guerreiro shimotsuke que se tornou um traidor do Estado. Posto que poucos desafiam impunes os mandamentos celestes. Tawara Toda Hidesato, outro caudilho shimotsuke, seguiu para o leste com uma ordem imperial para subjugar Masakado, e as forças rebeldes foram destruídas no intervalo de quatro anos. Ainda assim, quando Masakado chegou à sua hora extrema, ajustou oito flechas em um único arco, disparou-as simultaneamente, e abateu oito inimigos, simplesmente porque havia estudado esse texto.
O livro permaneceu mais tarde guardado entre os tesouros de sucessivos imperadores, não lido e inútil; mas, próximo à época da qual vos falo, foi dado a Oni-ichi Hogen, um talentoso e versátil mestre yin-yang que vivia em Ichijo Horikawa, como recompensa por oferecer orações em favor da nação. Yoshitsune descobriu que o livro estava trancado em um repositório secreto na casa desse mestre, e decidiu ir fazer-lhe uma visita.
Embora Hogen vivesse na capital, sua casa estava protegida como uma fortaleza, com um fosso, oito torres de vigia, uma ponte que era erguida entre as quatro e as seis da tarde e um portão sempre fechado até as onze ou doze horas na parte da manhã. Quanto ao próprio Hogen, era um homem altivo e arrogante. Ao chegar, Yoshitsune encontrou um jovem na varanda do alojamento de guarda. Chamou-o, fazendo sinal com seu leque. Exigiu que anunciasse ao dono da casa que um desconhecido queria falar-lhe. Hogen finalmente veio atender, e perguntou:
- Que desejas? Vens pedir que te dêem um arco ou algumas flechas?
- Não viria aqui para demandar tais coisas. É ou não verdade que a corte te confiou um tratado militar chinês intitulado Liu t'ao, estudado outrora por Masakado? Não é direito que o Liu t'ao fique trancado. De qualquer modo, de que te serve possuí-lo se não consegues lê-lo? Por favor não leves a mal se peço para vê-lo. Vou lê-lo todo em um único dia e o explicarei a ti quando o devolver.
Hogen se enfureceu e falou aos berros:
- Quem é o responsável por deixar esse indivíduo atravessar meu portão ? É o pior patife de toda a cidade!
Yoshitsune quis responder-lhe com a espada, mas refletiu que era melhor poupá-lo. Virou-lhe as costas mas não se afastou para longe, foi ficando por ali, vagueando tranqüilamente pelos vestíbulos da habitação nos dias que se seguiram. Não deu sinais de ter fome, embora ninguém o visse comer, e cada dia aparecia com um novo traje deslumbrante, para espanto do pessoal da casa. Gradualmente, se familiarizou com uma das serviçais, uma mulher humilde mas de bom coração chamada Koju, nunca tão ocupada que não viesse em sua ajuda. Numa ocasião, Yoshitsune perguntou-lhe sobre os filhos e filhas de Hogen, ouvindo dela que duas das três filhas eram casadas com gente da nobreza. Disse Yoshitsune:
- Para uma pessoa da classe de Hogen, é inconveniente procurar ter gente da nobreza como genros. Jamais se esforçariam para vingá-lo se o comportamento tolo e arrogante dele o expusesse a um insulto. Dize-lhe que estagia melhor como sogro de alguém como eu, que haveria de proteger sua honra.
- Ele cortaria a cabeça de qualquer um que dissesse coisa semelhante, homem ou mulher!
- Tu e eu não nos encontraríamos assim se não tivéssemos conhecido um ao outro em uma existência anterior, e não tenho razão de te ocultar meu nome, embora seja um segredo. Sou Gen Kuro, filho do chefe dos Estábulos da Esquerda, e é minha intenção apossar-me do tratado militar chamado Liu t'ao, quer Hogen goste ou não goste. Dize-me onde está guardado.
- Como eu poderia saber? Tenho ouvido que é o bem que Hogen mais aprecia.
- Então, que se há de fazer?
- Se escrever es uma carta, farei o melhor possível para obter uma resposta da filha mais moça e mais querida de Hogen - a que ainda é solteira. Nenhuma mulher resiste à tentação de ler mensagem de um seu pretendente.
"Yoshitsune compôs a carta, reconhecendo em Koju uma rara sensibilidade por mais ínfima que fosse a posição dela. E, por meio de persuasão, a boa mulher obteve uma resposta favorável de sua ama. Depois disso, Yoshitsune escondeu-se nos apartamentos da dama, deixando de freqüentar as dependências pessoais de Hogen. Não o vendo mais, Hogen exclamou:
- Que alívio! Ele desapareceu justamente quando eu estava desejando que ele fosse para onde eu nunca mais o visse ou ouvisse falar dele!
Numa ocasião, Yoshitsune disse à filha de Hogen:
- Não gosto de agir de maneira furtiva. Não podemos continuar assim indefinidamente. Por favor, vá contar a Hogen.
Assustada, ela rompeu em lágrimas e agarrou-lhe a manga. Ele insistiu:
- Quero ver o Liut'ao. Se não queres contar a teu pai sobre nós, poderias ao menos mostrar-me o livro?
Ela pensou que seu pai a mataria se descobrisse. E mesmo assim foi com Koju ao tesouro secreto de Hogen, removeu o rolo de sua caixa chinesa guarnecida de metal e o levou a Yoshitsune. Ele o desenrolou e examinou com o maior deleite. Copiando-o durante o dia e revendo-o atravessando a noite, guardou cada caractere na memória, entre o começo do sétimo mês e o décimo dia do undécimo mês. Depois disso, passou a circular abertamente e logo atraiu a atenção de Hogen, que se lamentou:
- Já é ruim que ele esteja aqui. Por que tem de ficar rondando os aposentos de minha filha?
Alguém lhe confidenciou que o intruso era filho do chefe dos Estábulos do Leste, Minamoto Yoshitomo. Hogen imaginou como reagiriam os Taira se soubessem que uma filha sua poderia casar-se com um Minamoto! Mais seguro seria arranjar para si uma recompensa, matando-o e levando a cabeça aos Taira. Como homem religioso, não podia sujar-se tirando uma vida; escolheu um valente para ir em seu lugar, seu cunhado e discípulo Tankai, e o convocou para uma conversa a portas fechadas:
- Não posso continuar a hospedar um jovem senhor que anda à vontade por aqui desde a última primavera, e é filho de Yoshitomo de Shimotsuke.
És o único que pode livrar-me dele. Se fores ao santuário Gojo Tenjin, darei um jeito para que ele esteja lá. Tua recompensa pela cabeça dele será o Liu- t'ao, que vens cobiçando por estes últimos seis anos. Será fácil reconhecê-lo: é ainda um menino de uns dezessete ou dezoito anos, usa um corselete de preço e uma espada marchetada de ouro. É bom ficares em guarda.
- Para mim não faz diferença se esse aí carrega uma espada boa demais para ele. Não vou precisar dar-lhe um golpe sequer a sério!
Hogen dispôs-se a falar com Yoshitsune, cujo nome até então proibia que se mencionasse em sua presença:
- Fiquei admirado ao saber que és filho do chefe dos Estábulos do Leste. Não posso imaginar-te como genro de um simples monge, como eu; no entanto, se tiveres êxito na capital, irei colocar-me inteiramente em tuas mãos. Mas, por agora, posso pedir-te para dar cabo de um sujeito de Kitashirakawa, chamado Tankai, que tem uma desavença estúpida comigo? Fui informado de que ele estará no santuário Gojo Tenjin nesta noite. Ficarei infinitamente grato se me trouxeres sua cabeça.
Yoshitune disfarçou a supresa:
- Cuidarei disso alegremente. Parece coisa complicada, mas podes deixar por minha conta. Não haverá de dar-me muito trabalho, ainda que seja homem bom de briga. Farei primeiro uma visita a Tenjin e cortarei sua cabeça na saída, tal como o vento levantando a poeira.
Hogen sorriu por dentro, lembrando como o outro, a despeito das precauções que tomasse, seria presa fácil de um adversário prevenido. Antes de partir, Yoshitsune foi ver a filha dele, à qual se afeiçoara. Quando lhe contou aonde ia e para quê, ela começou a soluçar:
- Isso é terrível! Meu pai tenciona matar-te! Não posso dizer-te mais sem tornar-me uma filha perversa, mas, se nada dissesse, desmentiria as promessas que te fiz e te perderia para sempre. É sabido que o casamento dura por duas vidas, enquanto pais e filhos nunca mais se encontram. Ontem, perto do meio-dia, meu pai chamou Tankai, deu-lhe vinho, e teve com ele uma conversa estranha.
- Seria um problema se não me houvesses alertado. Mas agora o patife vai ver como é difícil matar-me.
Chegando ao santuário, Yoshitsune se pôs de joelhos:
- Salve, deuses celestes misericordiosos! Rogo-vos que entregueis Tankai em minhas mãos!
Depois afastou-se por cerca de cinqüenta jardas, indo ocultar-se sob a sombra densa de uma árvore frondosa, pensando que era um bom lugar para tocaiar seu homem.
Este chegou, bem armado e cercado por diversos rufiões. Aproximou-se, rezando:
- Deuses celestes misericordiosos, deixai que eu mate o homem de quem Hogen me falou!
Yoshitsune havia localizado um alvo tentador no pescoço desprotegido de Tankai e já planejava atacá-lo:
- Pouco sabe o grandalhão como a morte o encara. Esta é a hora de retalhá-lo! Mas espera: já que ele está rezando aos mesmos deuses dos quais dependo, talvez eu deva conter-me por algum tempo. Fiz até o fim minha oração, mas ele ainda está a caminho do santuário. Os deuses poderão zangar-se se eu derramar sangue nestes recintos sagrados antes que ele termine suas devoções. Vou esperar até que esteja saindo.
Tankai não conseguia achar Yoshitsune. Sondou um monge, que confirmou ter visto um jovem de boa família passar por ali, já fazia algum tempo. Tankai concluiu que ele já estaria de volta à casa de Hogen e decidiu ir na mesma direção, disposto a trucidá-lo. Yoshitsune, espiando de seu esconderijo, exultou ao vê-lo aproximar-se. Mas, quando Tankai e seus sete esbirros estavam a umas dez jardas, um deles falou:
- Yoshitsune está nas melhores relações com uma filha de Hogen. Quando uma mulher ama um homem, deixa-o dominá-la completamente. Se ela ouviu sobre nossos planos e lhe contou, ele pode estar emboscado debaixo de uma árvore tal qual aquela ali na frente. Toma cuidado!
- Não te aflijas. Está bem, vamos provocá-lo. Se tiver tutano, irá aparecer; se for covarde, não ousará enfrentar-nos.
E, gritando na direção de Yoshitsune, que resolvera esperar até o desafiarem: - Será que um Genji desclassificado veio de Imadegawa para cá?! Yoshitsune atirou-se contra eles com um rugido, agitando a espada:
- Estou enganado ou és Tankai? Eu sou Yoshitsune!
Esquecendo todos os seus planos ousados, os sequazes se dispersaram em todas as direções. O próprio Tankai recuou umas 25 jardas antes de empunhar a alabarda e tentar reunir os homens:
- Viva ou morra, a maior vergonha de um guerreiro é a covardia!
Yishitsune carregou sobre Tankai, brandindo sua espada curta com a rapidez do relâmpago. Em desvantagem, Tankai reagiu desesperadamente com a alabarda, mas Yoshitsune aproveitou uma abertura momentânea para parti-la em dois pedaços. Enquanto Tankai arremessava sobre ele a parte que ficara em sua mão, ele atirou-se a fundo, acutilando o pescoço de Tankai com a ponta da espada. A cabeça tombou ao chão e assim Tankai pereceu, aos 38 anos de idade.
Os capangas fugiram às pressas, mas ele conseguiu acuar e matar dois deles; os outros escaparam, Yoshitsune recitou invocações a Buda debaixo de um cedro no santuário, enquanto tentava resolver o que fazer com os troféus:
- Hogen fez questão de pedir para ver a cabeça de Tankai. Pois vou surpreendê-lo.
Voltando, apresentou-se diante do portão da fortaleza de Hogen e gritou para que abrissem. Perguntaram quem era e ele se identificou como Yoshitsune. Algo havia de errado, eles pensaram; estavam esperando Tankai - deveriam deixar entrar o outro: Mal começavam a agitar-se, correndo entre o portão? a ponte, Yoshitsune já atravessara de um salto o fosso de dez pés e escalara o muro de oito, tão ligeiro como um pássaro deslizando sobre o topo das árvores! Bom proveito tirara do Liu-t'ao, que Hogen tinha mas nunca soube ler e Tankai nem chegou a ver. Apareceu-lhes de súbito em cima do muro, segurando as três cabeças. Enquanto os servidores se afastavam horrorizados, ele penetrou na casa e jogou as cabeças no colo de Hogen:
- A tarefa foi quase demasiada para mim, mas, como estavas ansioso para ver a cabeça de Tankai, aqui está ela.
Contrariado como estava, Hogen sentiu-se obrigado a agradecer, sua expressão amarga contradizendo as palavras, e logo retirou-se para um cômodo interno. Quanto a Yoshitsune, embora tivesse preferido demorar-se ao lado da dama pelo resto da noite, despediu-se dela para ir a Yamashina. A tristeza de partir lhe trouxe lágrimas aos olhos, ao passo que ela continuava prostrada, ali onde ele a deixara, soluçando de dar pena.
Por mais que tentasse, a filha de Hogen não conseguiu esquecer Yoshitsune. Quando adormecia, ele visitava os sonhos dela; quando despertava, lembranças dele povoavam-lhe a mente. O amor que a consumia finalmente tornou- se insuportável e no transcurso do inverno caiu doente - vergada sob a carga da paixão, deve-se supor, embora tenha havido quem dissesse que um espírito a possuía. A despeito de orações e medicamentos de toda espécie, morreu de coração partido aos dezesseis anos.
Entre os servidores de Yoshitsune, houve um guerreiro incomparável, monge e samurai, conhecido como Saito Musashibo Benkei, filho e herdeiro de Bensho, abade de Kumano, que por sua vez era descendente do regente Toryu, da linha ilustre de Amatsukoyane. Com a idade de cinco anos, parecia um garoto de doze ou treze. Aos seis anos, sofreu um ataque de varíola. Sua tia, contemplando-lhe a face coberta de cicatrizes e os cabelos desalinhados caindo até os ombros, disse consigo mesma:
- Com essa cara e esse cabelo, não irá longe. Melhor fazê-lo monge.
Levou-o a um douto e venerável prelado do complexo ocidental do monte Hiei, o superior de Sakuramoto, pedindo-lhe:
- Gostaria que educasses este menino, a quem cheguei a considerar como possível filho adotivo do senhor Sammi. Ele é tão feio que me sinto embaraçada para criá-lo, mas a mente dele é bastante viva. Poderias ensiná-lo a ler, mesmo que fosse um único caractere de uma sutra? Peço-te corrigir quaisquer falhas que notares nele e, em geral, trata-o exatamente como julgares melhor.
A medida que foi passando dias e meses em estudos diligentes em Sakuramoto, o garoto acabou se mostrando um letrado excepcional. Os monges lhe asseguravam não importar quão feia a face de alguém pudesse ser, o que contava é o que sabia. Não teria havido problema se ele se houvesse devotado apenas a essas buscas intelectuais, mas era um jovem forte, de porte vigoroso; nada apreciava mais do que convencer um grupo de pajens e jovens monges a disputar com ele partidas de luta atrás de um prédio deserto ou em área remota da montanha. Desde o momento em que os monges souberam dessas atividades, passaram a queixar-se sem parar ao superior. Tantas fez, que o superior acabou voltando-se contra ele. Diante disso, decidiu partir.
Um dia, chegando à capital, Benkei pôs-se a pensar:
- Um homem calcula sua riqueza em termos de um milhar. Hidehira de Oshu possui 1.000 cavalos de raça, Kikuchi de Tsukushi tem 1.000 armduras e Tayu de Matsura 1.000 aljavas e 1.000 arcos. Como não tenho dinheiro para comprar seja o que for, por que não coleciono espadas rondando pela capital e aliviando outros sujeitos de suas armas?
Noite após noite ele seguiu esse plano, até que o povo começou a falar:
- Um monge-duende, de dez pés de altura, tem ficado nestes dias à espreita nas ruas da capital, e está roubando espadas!
O ano foi chegando ao fim e, perto do final do quinto mês ou começo do sexto do ano seguinte, Benkei tinha acumulado uma vasta quantidade de armas no depósito de um certo templo budista em Higushi Kasumaru. No décimo sétimo dia do sexto mês, percebeu que possuía exatamente 999 espadas. Naquela tarde, fez uma jornada piedosa ao santuário Gojo Tenjin, e orou, quando começava a escurecer:
- Concede que eu conquiste uma lâmina de preço nesta noite!
Quando se fez tarde, andou para a parte sul do santuário, e ficou rondando junto ao muro de uma habitação particular, na expectativa de que algum dos adoradores de Tenjin estivesse usando uma arma condigna. Pelo amanhecer, justamente quando ele tomava a avenida Horikawa, ouviu ao longe o som queixoso de uma flauta. Pensou:
- Deve ser alguém a caminho de Tenjin para uma visita matinal. Não sei se é um monge ou um leigo. Se sua espada tiver algum valor, vou servir-me dela. Agachando-se quando a música foi chegando mais perto, viu um rapaz usando blusa azul, calções brancos e um corselete de chapas de prata. Da cintura pendia uma espada magnífica, com adornos de ouro. Benkei disse a si mesmo:
- Que arma soberba! Preciso tê-la!
Logo aprenderia que o estranho era um adversário do qual deveria cuidar-se, mas como poderia saber nesse momento? Yoshitsune, avançando atento, viu o ameaçador monge armado debaixo da árvore muku, e pensou:
- Aquela criatura tem uma aparência estranha. Deve ser o tal que vem roubando espadas aqui na capital.
Caminhou firme na direção de Benkei, o qual pensou:
- Tomei espadas de uma quantidade de guerreiros maduros. Se eu for direto a esse menino e lhe disser que me entregue a dele, minha cara e minha voz sozinhas lhe causarão tal pânico que há de concordar. Se recusa, eu o derrubo e a tiro à força.
Deus alguns passos e abordou Yoshitsune:
- Eu, que estava quieto aqui, esperando inimigos, acho curioso que venha um rapaz fino como tu, vestido de armadura. Não posso deixar-te passar sem dizer nada. Dá-me tua espada se queres seguir teu caminho.
- Ouvi dizer que algum asno tem andado por aqui ultimamente. Temo que não possa dar-te minha espada tão facilmente assim. Terás de vir pegá-la se a quiseres.
- Por mim, está bem!
Benkei desembainhou sua arma, Yoshitsune correu até o adversário, perto do muro. Benkei saltou para trás ao mesmo tempo que desferia um tremendo golpe na direção de Yoshitsune. Berrou:
- Nem mesmo um deus ousa opor-se a mim!
- O patife não é nada mau como lutador - admitiu Yoshitsune. Esquivou-se sob o braço de Benkei, como um relâmpago. Benkei tinha arremetido com tanto ímpeto com sua espada que a ponta ficou espetada no muro. Quando tentava soltá-la, Yoshitsune chutou-lhe o peito com o pé esquerdo, batendo tão vigorosamente que a arma voou das mãos de Benkei. Yoshitsune a alcançou e pulou com um grito para o alto do muro de nove pés, enquanto Benkei ficava imóvel, quase acreditando em seu espanto e dor que encontrara um demônio. Yoshitsune o advertiu:
- No futuro, não tentes mais nenhum de teus truques desvairados. Tenho ouvido sobre ti por longo tempo. Deveria ficar com tua espada, mas não quero que penses que preciso dela. Toma aqui!
Segurando a espada de Benkei contra o topo do muro, pisou sobre ela até deformá-la e a jogou para baixo. Com um olhar amargo para Yoshitsune, Benkei retificou a lâmina. Dispôs-se a ir embora, resmungando:
- És um lutador melhor do que eu imaginava. Mas parece que gostas de andar nesta vizinhança... Talvez eu não me tenha saído bem nesta noite, mas da próxima vez não serei tão descuidado.
Ocorreu a Yoshitsune que ele tinha o aspecto de um monge do monte Hiei. Chamou-o, zombando dele:
- Ei, monge de Hiei! Não és de fato o que pareces!
Benkei calou-se, mas resolveu que o mataria. Enquanto Yoshitsune saltava para o chão, deu um bote brandindo a espada; mas Yoshitsune alegremente ricocheteou para o topo do muro quando ainda estava no ar, a três pés do solo!
Quando as pessoas ouviam sobre o rei Mu da China, que subiu ao céu a partir do cimo de um muro de oito pés depois de ler o Liu t'ao, costumavam sempre comentar: "Esse é o tipo de milagre que só poderia acontecer na antigüidade." Mas, até em nossos tempos degenerados, esse mesmo livro ensinou a Kuro Yoshitsune como, estando no meio do ar, saltar de volta para o alto de um muro de nove pés. Naquela noite Benkei foi para casa frustrado.
No décimo oitavo dia do sexto mês, acorreram gentes de todos os lados, reunindo-se em Kiyomizu Kannon para adoração. Benkei disse consigo mesmo:
- Aquele sujeito que encontrei na noite passada é capaz de aparecer em Kiyomizu. Vou dar uma olhada.
Vagueou pelas proximidades do portão principal, mas não viu Yoshitsune em parte alguma. Entardecia e Benkei estava prestes a ir-se, desgostoso, quando ouviu sons de flauta vindos do monte Kiyomizu. Exclamou:
- Que beleza de ária! Não pode ser outro senão ele!
Permaneceu onde estava, à frente do portão do templo, meditando sobre o que iria pedir:
- Este templo foi dedicado, por Sakanoue Tamuramaru, a Kannon, o Iluminado, que fez voto de deixar-se ficar no mundo dos homens, adiando a hora de ganhar a onisciência até ter atendido a todos os pedidos da humanidade sob suas 33 formas. Também jurou conferir fortuna favorável a cada um que entrasse no recinto do templo. Pois, quanto a mim, não te peço boa sorte: simplesmente permite que eu tome aquela espada!
Nesse momento, Yoshitsune começou a sentir-se inexplicavelmente inquieto. Olhou receoso para o alto do monte e viu que aquele monge da noite anterior estava à sua espera, vestido com um corselete e armado tanto de espada como de alabarda.
- O miserável! Lá está ele de novo, esta noite!
E continuou avançando em direção ao portão. Benkei o saudou:
- Ora, pois não é o gentil-homem que encontrei ontem em Tenjin?
- É ele mesmo.
- Vais dar-me tua espada ou não vais?
- Podes pedir o quanto quiseres, que não vou entregá-ia. Se a desejas, terás de vir buscá-la.
- Ainda a gabar-se!
Benkei, floreando sua alabarda, atacou, mas Yoshotsune, com desanimadora destreza, aparou a cutilada. Benkei toi forçado a admitir para si mesmo que não podia competir com ele. Falou Yoshitsune:
- Por muito que gostasse de continuar com isso pelo reste da noite, fiz um voto de ir a Kannon.
E prosseguiu para o templo. A Benkei restou reconhecer:
- Sinto-me como um homem que perdeu alguma coisa que segurava nas mãos.
E Yoshitsune pensou:
- Aquele é um homem bravo. Se ainda estiver ali, de manhã, vou fazê-lo largar no chão a espada e a alabarda, vou feri-lo um pouco e vou capturá-lo. Não vejo graça em fazer as coisas sozinho. Farei dele meu seguidor.
Sem suspeitar de nada, Benkei seguiu atrás, ainda decidido a conseguir a espada. Ao entrar no recinto consagrado a Kannon, que estava tomado pelo murmúrio das vozes dos adoradores, ouviu alguém ao lado da treliça interior, recitando com reverência as linhas de abertura do primeiro capítulo da sutra do lótus. Benkei refletiu:
- Essa é a voz daquele que me chamou de patife. Vou espiar.
Deixara a alabarda na entrada e, sem armas além da espada, entrou empurrando rudemente através da multidão, dizendo:
- Sou um oficiante do templo; afastem-se por favor!
Quando atingiu uma posição por trás de Yoshitsune, que cantava, plantou-se ali com as pernas bem abertas. As pessoas que o viam à luz das lâmpadas do altar diziam:
- Que monge medonho! É um gigante!
Yoshitsune admirou-se:
- Como soube ele que eu estava aqui?
Para surpresa de Benkei, ele estava agora vestido de mulher, com um pano cobrindo a cabeça. Confuso mas determinado, Benkei cutucou-lhe asperamente o lado com a bainha da espada, como se pedisse passagem:
- Quer sejas pajem ou dama, eu também sou um devoto. Sai da frente!
Como Yoshitsune não dava resposta, Benkei deu-lhe um forte empurrão, enquanto dizia a si mesmo:
- Este não é um qualquer. Deve ser meu homem.
Yoshitsune então exclamou:
- Seu peste! Um pedinte como tu poderia muito bem rezar debaixo de uma árvore ou de um telhado de palha; já te seria bastante para fazer ouvir teu pedido. Como te atreves a provocar um distúrbio onde pessoas importantes vêm adorar? Sai fora daqui!
- Essa é uma coisa inamistosa para se dizer a alguém que conheces desde ontem à noite. Cede-me espaço!
Enquanto os circunstantes chocados olhavam com desaprovação, Benkei saltou agilmente por cima de duas esteiras até o lado de Yoshitsune, arrancou- lhe a sutra e abriu-a:
- Que bonita sutra! E tua ou de algum outro?
Como Yoshitsune mantinha silêncio, começou a recitar, e lhe disse:
- Vem, lê junto comigo. Benkei tinha sido um dos mais famosos leitores de sutra da Residência Ocidental no monte Hiei, e Yoshitsune fora bem treinado como pajem em Kurama. Ao lerem a primeira parte do segundo rolo alternadamente, com Benkei iniciando e Yoshitsune dando continuação, a barulhenta multidão de peregrinos ficou quieta, e os devotos pararam de soar seus sinos. Uma indescritível aura de santidade encheu a noite silenciosa. Depois de algum tempo, Yoshitsune ergueu-se, dizendo:
- Tenho de falar com um conhecido. Haveremos de encontrar-nos novamente.
Benkei o puxou pela mão e o interpelou:
- Se não posso reter um homem quando ele está bem na minha frente, que possibilidade terei de vê-lo de novo? Sigamos juntos.
Quando chegaram à porta do sul, Benkei voltou a falar: - É sério meu desejo por tua espada. Vais dá-la a mim?
- Não posso fazer isso, é minha herança.
- Seja! Que eu então a ganhe de ti em luta limpa.
- Pois bem, lutaremos por ela.
Os dois sacaram suas espadas e começaram a esgrimir energicamente. Os presentes reclamavam:
- Que significa isso? Imaginem lutar num espaço restrito como este - sem falar no absurdo de este homem meter-se com um menino! Larga da espada, ó monge!
Benkei simplesmente os ignorou. Mas quando Yoshitsune livrou-se do manto, revelando a blusa, os calções e o corselete que vestia por baixo, os espantados espectadores souberam que não se tratava de pessoa comum. Foi tal a excitação entre as damas, monjas e crianças visitantes, que algumas delas tombaram da varanda, enquanto os homens se precipitavam para fechar as portas do recinto, de modo a manter os combatentes no exterior.
Em certo ponto, Yoshitsune e Benkei foram descendo até a platatorma de dança, sem nunca interromper a luta. Os circunstantes, que a princípio tinham receado chegar mais perto, agora vinham cercá-los, fascinados, como quem cumpre o ritual de rodar em volta de uma imagem sagrada. Alguém perguntou:
- Quem vencerá, o pajem ou o monge?
- O pajem não pode perder. O monge está fora de forma; já está cansado. Benkei se sentiu desencorajado ao ouvir essa réplica:
- Parece que estou liquidado!
Ainda assim seguiu lutando encarniçadamente. De súbito, Yoshitsune aproveitou uma abertura em sua guarda e foi a fundo, espetando a ponta de sua arma no flanco esquerdo de Benkei, logo sob o braço. Então, enquanto Benkei vacilava, golpeou-o repetidamente com o reverso da lâmina até que ele se esticou no chão, com a cabeça voltada para leste. Yoshitsune plantou um pé sobre o corpo prostrado do monge e inquiriu:
- Que dizes agora? Estás disposto a seguir-me?
Benkei respondeu, parecendo conformado:
- Isso deve ser meu karma, é o resultado de alguma vida anterior. Prometo que te servirei!
Yoshitsune vestiu o corselete de Benkei sobre o seu próprio, tomou de ambas as espadas e, antes do nascer do sol, marchou com ele para Yamashina, onde permaneceu até que o ferimento dele se curasse. Então os dois passaram pela capital para observar as atividades dos Heike. Uma vez que Musashibo Benkei se tornou samurai de Yoshitsune, seguiu-o fielmente como uma sombra, realizando inúmeros feitos galantes durante os três anos de campanha de seu mestre contra os Heike. Ficaria com Yoshitsune até o fim, tombando em sua defesa na batalha final, em Koromogawa.
Yoshitsune residiu em Oshu por vários anos, protegido dos Taira pelo próprio neto de Kiyomori, Hidehira. Nessa época, os métodos arrogantes e a intransigência de Kiyomori começavam a desagradar o ex-imperador Go-Shirakawa, os nobres da corte e os guerreiros das províncias. Os Minamoto intensificaram seus movimentos e, por fim, chegou a Yoshitsune em Oshu a notícia de que seu irmão Yoritomo havia-se rebelado, subjugando oito províncias e planejando marchar contra os Heike na capital. Yoshitsune comunicou a Hidehira sua decisão de aliar-se à rebelião:
- É necessário que eu também faça alguma coisa. Vou alcançar meu irmão e buscarei tornar-me o comandante de algum de seus exércitos.
Hidehira concordou que já se havia esperado por tempo bastante. Chamou Izumi Kanja e lhe informou sobre a revolta em Kanto e que os Genji se preparavam para marchar sobre a capital; mandou-o então convocar os guerreiros de suas duas províncias. Mas Yoshitsune não queria esperar:
- Gostaria de poder levar uns mil ou dez mil guerreiros, mas não posso arriscar-me a chegar tarde demais.
Partiu com tal pressa que Hidehira não teve oportunidade de fazer os arranjos necessários, e pôde dar-lhe trezentos homens apenas. Quando o normalmente imperturbável Yoritomo foi informado por Yatoro da chegada do irmão, não tentou esconder o prazer que a notícia lhe dava:
- Faze-o entrar aqui. Eu o verei.
Yatoro apressou-se a levar a resposta a Yoshitsune, que se apresentou com muita disposição, acompanhado por Sato Tsuginobu, Sato Tadanobu e Ise Saburo. Por trás das grandes cortinas do acampamento de Ybritomo, que formavam um cercado de doze milhas de circunferência, os caudilhos das Oito Províncias, tanto os grandes como os pequenos, estavam sentados em tapetes de crina. Para o lugar de Yoritomo, uma esteira de palha fora providenciada, mas ele preferiu um tapete. Quando Yoshitsune entregou o capacete a um serviçal e ajoelhou-se ao lado da cortina, com o arco na mão, Yoritomo deslocou- se para a esteira, dizendo ao recém-chegado:
- Senta em meu tapete, coloca-te aqui.
Depois de muitos protestos, Yashitsune fez o que lhe ordenavam. Corriam lágrimas dos olhos de Yoritomo ao contemplar o irmão e Yoshitsune também chorava, embora nada soubesse do que ia na mente de Yoritomo. Afinal. Yoritomo se compôs:
- Em nenhuma ocasião ouvi talar de teu nome desde que nosso pai morreu. Na última vez em que te vi, eras ainda uma criança, e, desde meu exílio em Izu, meus guardiães me impediam de te escrever, embora soubesse que estavas em Oshu. Estou exultante por teres acorrido para cá, como um irmão fiel. Olha em volta para estes guerreiros. Vieram juntar-se a mim das Oito Províncias e de outros lugares assim que me revoltei, mas sou incapaz de falar francamente com qualquer deles. São estranhos - homens que me vigiam constantemente, à espera de algum sinal de fraqueza. Com essa ideia, passo a noite acordado. Por certo, tenho pensado repetidamente em atacar os Heike, mas sou um só. Se me dispusesse a ir, o que aconteceria nas províncias do leste? Não teria um irmão de confiança para enviar como legado, e alguém de outra família poderia transferir-se para o lado do inimigo. Não estaria mais feliz, como estou agora, se nosso pai tivesse voltado do túmulo!
Após uma pausa, Yoritomo prosseguiu:
- Quando nosso ancestral Yoshiie atacou o castelo de Muno, durante a Guerra dos Três Anos Posteriores, ele perdeu seu exército e recuou para a margem do rio Kuriyagawa. Preparou oferendas, volveu o rosto na direção da capital, e rezou: "- Salve, grande Bodhisattva Hachiman! Que tua proteção seja mantida; consente que minha vida seja preservada e minha missão cumprida." Então, como por intervenção divina de Hachiman, o irmão de Yoshiie na capital, o secretário do Ministério das Punições, subitamente escapuliu do palácio imperial onde estava de serviço e deixou a cidade com duzentos homens, alegando que precisavam dele em Oshu. Reunindo recrutas pelo caminho, galopou até o rio Kuriyagawa para aliar-se ao senhor Yoshiie com uma força de 3.000, e finalmente Yoshiie subjugou Oshu. Pois até o regozijo de Yoshiie naquela ocasião não poderia ser maior do que meu prazer neste encontro. Desde hoje, seremos ambos inseparáveis, como o peixe e a água, até apagarmos a desgraça de nossos antepassados e confortarmos os espíritos dos mortos. Se estiveres de acordo, isso me agradará mais do que posso dizer.
Ao falar, as lágrimas de Yoritomo voltaram a rolar. Yoshitsune também chorava em silêncio, enquanto os senhores de todos os níveis ali reunidos tocavam com o pano das mangas nos olhos, em sinal de simpatia. Yoshitsune assim replicou:
- É verdade, não nos encontramos desde que eu era um bebê. Depois que foste exilado, vivi em Yamashina por algum tempo e então, aos sete anos, fui para Kamakura, onde estudei da forma usual até a idade de dezesseis. Mais tarde, mudei-me para a capital. Alguém me avisou que os Heike planejavam matar-me, e fui para Oshu a fim de pedir proteção a Hidehira. Vim para cá logo que ouvi falar de tua revolta. Agora que te vi, é como se tivesse encontrado nosso falecido pai. Já havia dedicado minha vida a ele. Não posso objetar a nada que queiras empreender.
E sua voz partiu-se neste ponto. Foi assim que Yoritomo decidiu enviar Yoshitsune à capital, como seu comandante-em-chefe.
No terceiro ano de Juei, Yoshitsune foi pois para a capital e dispôs-se a expulsar os Heike. Lutando valentemente em Ichi-no-tani, Yashima e Dan-no-Ura, esmagou os inimigos completamente.
Na tomada de Ichi-no-tani, a primeira dessas batalhas, Yoshitsune conduzia para lá suas tropas, enquanto seu irmão Noriyori atacava Ikuta-no-Mori. Na manhã do sexto dia, Yoshitsune dividiu seus dez mil cavaleiros em duas forças. Mandou Toi no Jiro Sanehira com sete mil homens para a entrada ocidental de Ichi-no-tani, e ele próprio contornou pela estrada de Taba, à testa dos três mil restantes, com intenção de escalar o desfiladeiro que se erguia por trás da fortaleza. Seguia através da trilha de Hiyodorigoe. Seus guerreiros todos o alertaram:
- A região de Hiyodorigoe é conhecida por seus perigos. Estamos prontos a morrer em batalha, mas não temos desejo de morrer de uma queda. Certamente, haverá alguém que conheça estas montanhas.
Um jovem de dezoito anos, Beppu no Kotaro Kiyoshige de Musahi, adiantou-se e disse:
- Meu pai, o monge Yoshige, uma vez me disse: "Quando te perderes nas montanhas, seja sob ataque inimigo ou numa caçada, deves soltar as rédeas de um cavalo velho e deixar que ele siga à tua frente. Assim sempre acabarás dando em algum atalho."
Yoshitsune aprovou:
- Excelente conselho! O clássico nos ensina: Mesmo se a neve o campo recobrir, cavalo velho vê por onde ir.
Pôs uma sela marchetada de ouro e um freio polido em um velho cavalo ruço, de pêlo esbranquiçado, ajustou as rédeas e as largou sobre o pescoço do animal, e o tocou para a frente na direção dos recessos desconhecidos da montanha.
Como era de esperar no início do segundo mês, havia lugares em que as placas de neve ainda enfeitavam os picos, como flores brancas, e havia outros em que os guerreiros escutavam pássaros cantando nos vales, enquanto seguiam caminho através da névoa densa. Subindo mais, acharam-se entre cumes cobertos de nuvens de uma brancura ofuscante; nas descidas, encontravam encostas arborizadas e precipícios abruptos. A neve nos pinheiros ainda não descongelara; a estreita trilha musgosa era quase imperceptível. Flocos de neve voavam como flores de ameixeira no zunido do vento. A escuridão envolveu a passagem até que, tangendo os corcéis aqui e ali, tiveram todos de desmontar e armar acampamento.
Musashibo Benkei trouxe um homem idoso ao comandante Kuro Onzoshi Yoshitsune, que lhe perguntou:
- Quem é este?
- Um homem que caça nestas montanhas.
- Então, ó caçador, deves conhecer bem a área. Dize a verdade.
- Sim, é claro que conheço.
- Quero descer daqui até a fortaleza dos Heike em Ichi-no-tani. Isso é possível ?
- Não, de jeito nenhum. Não há caminho por onde um homem a pé possa descer os trezentos pés da garganta e os cento e cinqüenta pés da face rochosa. A cavalo seria inconcebível.
- E os cervos? Conseguem passar?
- Sim. Quando o tempo esquenta, os cervos de Harima cruzam para Tamba a fim de refestelar-se no capim alto, e, quando esfria, os cervos de Tamba vão para Inamino em Harima, para pastar onde a neve é mais rasa.
- Ora, isso me soa como uma trilha utilizável! Um cavalo pode certamente andar por onde um cervo passa. Muito bem, serás nosso guia.
O caçador protestou que era velho demais.
- Não terias um filho?
O caçador respondeu que sim. Apresentou um jovem de dezoito anos chamado Kumao. Prontamente ataram no alto da cabeça o cabelo do rapaz, deram-lhe o nome de Washinoo no Saburo Yoshihisa, e o designaram para a vanguarda como guia. Quando Yoshitsune morreu em Oshu, rompido com Ybritomo após a derrota dos Heike, foi esse mesmo Yoshihisa um dos raros que ficaram com ele até o fim.
Enquanto Yoshitsune e seu pequeno grupo percorriam a perigosa trilha, as forças comandadas por seu irmão Noriyori desencadearam seu ataque frontal contra a fortaleza de Ichi-no-tani. Até entre as sete e as oito horas os guerreiros de Noriyori, em número menor do que os defensores, ainda não tinham conseguido romper as posições dos Taira, arduamente mantidas em luta sangrenta. Foi então que Yoshitsune e seus homens desceram precipitadamente pela encosta escarpada, caindo sobre a retaguarda desprotegida dos inimigos. Eram poucos, mas os ecos de seus gritos de guerra faziam com que parecessem um exército de cem mil. Puseram fogo nos quartéis e instalações dos Heike. Um vento violento propagou o incêndio, cobrindo a área com nuvens de fumaça negra, e numerosíssimos Heike, em pânico, correram até o mar para salvar-se. Muitos navios tinham sido deixados de prontidão à beira da água, mas de que adiantariam quando quatrocentos ou quinhentos homens, às vezes até um milhar, tentavam acomodar-se em uma única embarcação? Três grandes navios afundaram depois de afastar-se umas escassas trezentas e sessenta jardas da praia. Os que conseguiram escapar, navegaram para Yashima, tendo perdido alguns de seus principais guerreiros, inclusive Atsumori.
Um dos servidores de confiança de Yoritomo era Kajiwara Kagetoki, homem emproado e vingativo, sem escrúpulos, com uma língua ferina que o fazia temido e odiado em Kamakura. Pouco depois da vitória em Ichi-no-tani, Kagetoki estava de volta a Kamakura, enchendo os ouvidos de Yoritomo com estórias inventadas sobre o comportamento orgulhoso e prepotente de Yoshitsune. Ao receber as informações desse conselheiro tão acatado - e tomado de inveja diante dos sinais do gênio militar e da popularidade do irmão - Yoritomo passou a suspeitar dele; negou-lhe qualquer reconhecimento pelos feitos heróicos e lhe retirou o mandado de combater os Heike.
Entretanto, as forças comandadas por Noriyori, que deveriam atacar Yashima, acabaram imobilizadas na tentativa malsucedida de derrotar Tomomori. Yoritomo viu-se obrigado a dominar a hostilidade contra Yoshitsune, e o restabeleceu em seu posto. E novamente colocou a seu lado Kajiwara Kagetoki, o caluniador. Em conselho, em Watanabe, os chefes debatiam sobre o modo de atacar, indagando:
- Não temos experiência em combate naval. Como faremos então? Kagetoki ergueu-se e falou:
- Sugiro que mandemos nossos homens colocar remos reversos nos botes para esta batalha.
Perguntou Yoshitsune:
- Que são "remos reversos"?
- Quando um homem segue a cavalo, é fácil para ele guiar a montaria, virando para um lado ou para o outro e avançando ou recuando, conforme necessário. Mas não é fácil inverter de repente o curso de um barco. Por isso digo que devemos instalar remos tanto na proa como na popa, com lemes laterais; assim ficará simples dirigir um bote para onde quisermos. Usaremos os remos da proa para nos retirarmos quando o inimigo estiver forte, e os da popa para atacar quando estivermos em situação vantajosa.
- Um guerreiro sempre bate em retirada se o comandante se deixa ficar atrás quando ordena o ataque. Como poderemos esperar vencer se nos preparamos antes do tempo para fugir?
- Um bom comandante-em-chefe galopa para a trente quando pode e para trás quando é preciso. Salvar-se para destruir o inimigo na ocasião certa é a marca de um líder competente. É perigoso arremeter cegamente, sem pensar, como um javali selvagem. As pessoas prudentes não têm boa opinião de homens tão rígidos.
- Nada sei de javalis e de veados. Em batalha só me importa atacar e vencer!
Embora os samurais não ousassem rir na cara de Kagetoki, divertiam-se entre si trocando caretas e olhares significativos. "- Yoshitsune e Kagetoki acabarão se atracando", cochichavam eles. Tal não se deu, mas Kagetoki um dia se vingaria, caluniando Yoshitsune na frente de Yoritomo, que lhe daria ouvidos e passaria a perseguir o irmão até a morte.
Reconhecendo, de qualquer forma, que seus guerreiros eram cavalarianos, inexperientes em lutas navais, Yoshitsune preferiu assediar Yashima por terra - pela retaguarda, se pudesse - em vez de desafiar os Taira no mar, onde os Genji estariam em desvantagem. Preparou-se para partir com um pequeno contingente de 150 homens, em cinco navios, às duas horas da manhã. O vento soprava com tanta violência que os marinheiros se recusavam a embarcar, até os guerreiros ameaçarem vará-los com flechas! A viagem de três dias foi completada em menos de quatro horas e, ao nascer do sol, desembarcaram em Awa-no-Katsuura.
Nesses confrontos, não era só a força maciça dos exércitos que contava, mas a habilidade de cada homem. Na troca cerimonial de flechadas, sinalizando o início das hostilidades, Yoshitsune mandou a Yoichi Munetaka atingir o leque vermelho com um desenho de sol dourado, preso na ponta de uma vara, que uma dama elegantemente vestida erguera junto à proa de um barco dos Heike. O barco estava a uns trezentos pés da praia. O arqueiro entrou na água a cavalo e foi seguindo adiante para ficar o mais perto possível do alvo, que subia e descia com o mar agitado pelo forte vento norte. Ainda assim, não se sentia confiante, falava que seria uma desgraça eterna para seu lado se errasse. Fechou os olhos e invocou a ajuda do Bodhisattva Hachiman e de todos os deuses padroeiros de sua província. Ao abrir os olhos, o vento lhe pareceu mais brando e o leque mais fácil de atingir - acertou, e foi saudado pelos aplausos dos Genji e dos Heike!
Em certo momento, o próprio Yoshitsune, lutando longe da praia, deixou cair no mar seu arco. Com grande risco, voltou, curvou-se e atraiu o arco para si com o chicote, conseguindo recuperá-lo depois de várias tentativas. Seus guerreiros veteranos o repreenderam, dizendo:
Um arco não vale uma vida, mesmo que seu preço fosse de dez mil, ou mesmo de cem mil moedas.
Yoshitsune replicou:
- Não foi por relutância em perder o arco que o salvei. Ficaria contente com a perda se fosse um arco magnífico, como o de meu tio Tametomo, que precisava de dois ou três homens para encordoá-lo. Nesse caso podieria até deixá-lo cair de propósito. Arrisquei a vida porque não queria que algum inimigo se apossasse de uma arma tão fraca e começasse a zombar: "- Este arco pertenceu a Kuro Yoshitsune, comandante-em-chefe dos Genji"
Os homens ficaram impressionados.
Da praia do desembarque seguiram marchando, cobrindo um percurso de dois dias em um dia apenas, pondo fogo nas casas pelo caminho e chegando ao palácio na manhã do décimo nono dia. Os Taira foram pegos de surpresa; a guarnição que ficara na ilha era insuficiente, pois muitos estavam ausentes, lutando em Iyo. E os ferozes gritos dos invasores, em meio às nuvens de fumaça, faziam crer que eles formavam um exército poderoso. No vigésimo primeiro dia, depois de resistência encarniçada, os Taira se retiraram, perseguidos por Yoshitsune.
A batalha decisiva, porém, foi travada no mar, em Dan-no-ura. Hesitando entre apoiar os Heike ou os Genji, Tanzo, o superintendente de Kumano, ofereceu orações e promoveu a execução de música sacra no santuário de Tanabe Imagumano. Em resposta, recebeu uma diretiva do oráculo: "aderir à bandeira branca." Ainda em dúvida, pôs em luta sete galos brancos contra sete vermelhos, na presença da imagem divina. Nenhuma das aves vermelhas venceu: todas fugiram derrotadas. Resolveu afinal apostar no branco, que era a cor dos Genji. Convocou os parentes, embarcou com dois mil homens em duzentos botes, levou a bordo o deus do santuário, e seguiu para Dan-no-ura, com a figura protetora de Kongo Doji no topo do mastro da bandeira de seu barco. Tanto os Genji como os Heike reverenciaram a figura quando viram a flotilha avizinhar-se. Foi um triste golpe para os Heike vê-los juntar-se aos Genji. Kawano no Shiro Michinobu de Iyo também veio aliar-se aos Genji, com 150 botes.
Com tais reforços, Yoshitsune reunia um número maior de navios do que os Taira, mas estes se dispuseram a lutar bravamente. Duas milhas separavam as posições dos adversários. Uma maré vasante turbulenta fazia sentir seus efeitos em Moji, Akama e Dan-no-ura, e os botes dos Genji, indo contra a corrente, eram arrastados para o alto-mar. Os vasos dos Heike aproveitavam a vantagem para avançar. Os Taira se dividiram em três grupos; os arqueiros do hábil Yamaga Hideto faziam muitas vítimas.
Depois da disputa com flechas, os Genji e os Heike lançaram-se ao ataque e se engalfinharam com absoluto desdém pela vida, soltando gritos e insultos; as flotilhas emparelharam e a luta começou a ser disputada com espada e lança. Nenhum lado parecia inferior, mas os Genji temiam não conseguir prevalecer contra inimigos que tinham a seu favor - e levavam consigo - o imperador menino, e também a espada, o espelho e o adereço que Amaterasu, deusa do sol, entregara a seu neto Ninigi, de quem descendem todos os imperadores do Japão. Então algo surgiu no céu parecendo uma nuvem branca; mas não era nuvem, e sim uma bandeira branca, que flutuava no ar e descia até o cordão dar a impressão de estar prestes a tocar na proa de uma nau Genji. Yoshitsune exclamou:
- É um sinal do grande Bodhisattva Hachiman!
Jubiloso, lavou a boca e prestou adoração, e todos os guerreiros fizeram o mesmo. Além disso, um cardume de uns dois mil golfinhos veio à tona e nadou desde o lado dos Genji até onde estavam os Heike. O ministro de Estado Munemori convocou o douto Harenobu:
- Golfinhos sempre aparecem em cardume, mas nunca os vimos em tão grande número. Usa tuas artes divinatórias para descobrir o que significa isto.
- Os Genji serão destruídos se os golfinhos permanecerem na superfície; nós estaremos em perigo se mergulharem e passarem por nós.
Mal tinha falado, e as criaturas passaram direto sob as naus dos Heike. Disse o adivinho:
- Isto é o fim para nós!
Nessas circunstâncias, Awa no Minbu Shigeyoshi, que durante os três últimos anos estivera a serviço leal dos Heike, de súbito desertou para o lado dos Genji. Os Heike tinham embarcado seus homens proeminentes de nascimento nobre nos botes de combate, postando os subordinados nos vistosos navios ornamentados de estilo chinês; sua intenção era cercar e aniquilar os Genji no momento em que atacassem esses navios, acreditando estarem neles os nobres. Mas, informados sobre o ardil por Shigeyoshi, os Genji passaram a ignorar os navios e convergiram na direção dos botes que transportavam os comandantes disfarçados e o próprio imperador.
Nesse ínterim, todos os guerreiros de Shikoku e Chinzei bandearam-se para os Genji. Não havia como escapar: o mar agitado barrava o caminho de fuga para litorais distantes, as linhas de arqueiros negavam acesso às praias próximas. Aquele dia parecia destinado a testemunhar o fim da disputa entre os dois clãs pelo domínio do país. A batalha logo estaria terminada e, com ela, a sorte da guerra se decidiria. Para o vencedor, Yoshitsune, não haveria triunfo, pois a ingratidão do irmão Minamoto Yoritomo, senhor de Kamakura e futuro Shogun, só lhe reservava uma longa perseguição até que se matasse, com honra, em Koromagawa. Mas os filhos dos Heike haveriam de desaparecer da face da terra.
Yoshitsune havia determinado a seus arqueiros que visassem os marinheiros e pilotos. Com isso, os botes dos Heike agora seguiam à deriva, fora de controle, e os guerreiros Genji começavam a abordá-los, encontrando no fundo dos botes os corpos dos que tinham sido atingidos pelas flechas. O conselheiro Tomomori seguiu em uma pequena embarcação para a nave do imperador, e disse:
- Parece que chegamos à hora extrema. Lancem ao mar tudo que possa ofender a vista.
Percorreu a extensão toda, de proa a popa, limpando tudo com as próprias mãos, varrendo, esfregando e espanando. As damas perguntaram:
- Como vai a batalha, senhor Conselheiro? Como estão as coisas?
Ele respondeu com sarcasmo:
- Do jeito que vão, sereis em breve apresentadas a alguns notáveis guerreiros do leste.
- Como podes caçoar num momento como este?!
Todas elas começaram a soltar gritos e gemidos. A monja de segunda ordem, viúva de Taira Kiyomori e avó do imperador Antoku, decidiu atirar-se ao mar com o menino, afogando-se com ele. Dirigiu-se ao menino e aos demais: - Embora eu não passe de uma mulher, não cairei em mãos inimigas. Irei para onde Vossa Majestade vai. Acompanhai-nos prontamente, ó vós cujos corações são leais a ele!
Falando assim, caminhou para a borda do navio. O imperador mal completara oito anos, mas parecia muito crescido para a idade. Sua face era de uma beleza radiante e os cabelos negros abundantes chegavam abaixo da cintura. Perguntou com um olhar surpreso:
- Aonde me levas, minha avó?
Ela voltou a face para o jovem soberano, contendo as lágrimas:
- Não compreendes? Tu te tornaste imperador porque obedeceste aos Dez Bons Preceitos em tua vida anterior, mas agora um karma adverso te tem em seu laço. Tua boa sorte chegou ao fim. Vira-te para o leste e dize adeus ao grande santuário de Ise; depois vira-te para oeste e repete o nome sagrado de Amida Buda, de modo que ele e suas hostes possam vir escoltar-te até a Terra Pura. Este é um país de tristeza; vou levar-te a um reino feliz chamado Paraíso.
Sua majestade usava um manto verde-cinza, e seu cabelo, em penteado próprio de menino, erguia-se em dois rabichos laterais. Com lágrimas marejando os olhos, juntou as mãozinhas, ajoelhou-se para leste e despediu-se do Grande Santuário. Então voltou-se para oeste e recitou o nome sagrado de Amida. A monja o abraçou e disse com voz tranqüilizadora:
- Há uma capital, também, sob as águas.
E com isso mergulhou com ele nas profundezas, levando debaixo do braço o precioso adereço Yasakani no Magatama e, presa à cintura, a espada Kusanagi no Tsurugi. Ah, como é triste que a brisa primaveril da impermanência venha dispersar as flores nobres num instante! Ah, como é cruel que as ondas tumultuosas da transmigração devam envolver a Pessoa-Jóia! Muitos membros do clã dos Taira também se afogaram, inclusive o bravo Tomomori. Outros foram capturados, como Munemori, o comandante-em-chefe, e seu filho, e o poder dos Taira se extinguiu. A dama Dainagon-no-suke tentou saltar com o cofre chinês contendo o espelho sagrado Yata no Kagami, mas uma flecha prendeu a fímbria de seu vestido à borda do bote, e os guerreiros Genji a detiveram. Dos três sagrados tesouros imperiais, o espelho, como depois também o adereço, foram recuperados. Mas a espada perdeu-se para sempre no fundo do oceano.
コメント